Minha família tem forte ligação com o antigo grupo Ipiranga. Há quase 55 anos, meu avô, Luís, iniciou sua vida profissional na velha refinaria, como aprendiz do Senai. Vinha de uma família pobre, cheia de dificuldades. Acho que não chegou a passar fome. Mas como ele não comenta muito, entendo que prefere não lembrar daquela época.
Aos poucos, a vida foi melhorando. Quando casou com a minha avó, já tinha crescido no emprego. Para isso, tinha passado aniversários, natais, páscoas e outras datas importantes dentro da fábrica. Participou da expansão da unidade.
Na época, administrada por Francisco Martins Bastos, a refinaria tratava muito bem seus funcionários. Pelo menos é o que todos dizem.
Uma das "regalias" era a colônia de férias destinada aos empregados. Localizada na Avenida Atlântica, no coração do balneário Cassino, era a casa de veraneio de centenas de funcionários. Seus trinta e poucos quartos serviam de cenário para colegas virarem amigos. Era lá que nasciam as amizades entre filhos e mulheres dos funcionários. Seu pagamento era irrisório e proporcional ao salário do interessado.
A história se repetiu com meu pai, Sergio. Depois de passar muitos verões na colônia, jogando bola até escurecer, virou engenheiro da Ipiranga.
Então parte do que ele viveu foi transmitido para a minha família e a mim. Não sei quantos verões passamos lá na colônia. Em minha memória, foram todos. Porque mesmo quando não dormíamos naqueles quartos, chegávamos à tarde e só saíamos à noite. Futebol, paddle, ping-pong, sinuca, corrida de bicicleta. Namorinhos de verão escondidos dos pais.
Quando visitei a colônia para fazer esta reportagem, vi sua mudança pela primeira vez. Os quartos que recebiam os felizes funcionários de chinelos de dedo agora são casas de centenas de trabalhadores de uniforme e botina, que atravessaram o país para construir plataformas de petróleo no Rio Grande do Sul.
Para não transparecer que tinha me emocionado ao ver minha segunda casa ser transformada, afastei-me dos colegas Caroline Torma e Lauro Alves. Lembrei de quando saí correndo da cancha de futebol com o joelho ensanguentado por causa de mais um tombo e fiquei me perguntando como faria para atravessar o muro que cruza a colônia de cabo a rabo e fazer um curativo.
Olhei para o lado e vi que a Carol olhava, parada, para dentro dos muros. Seu polegar apertava tanto a caneta que a ponta estava branca. Ela comentou que tinha passado alguns verões por ali também.
Entendi, então, que a transformação da Colônia de Férias da Ipiranga em um abrigo para funcionários do polo naval era o símbolo que a cidade mudou de vez. A velha refinaria faz parte de um passado glorioso que essas novas empresas tentam repetir.
Para isso, os rio-grandinos precisarão respeitar mais esses trabalhadores. Os milhares de quilômetros separam também nossas diferenças sociais e culturais. Claro, eles eventualmente "passam dos limites". Mas nosso preconceito potencializa o mau-comportamento. O desenvolvimento vem com o tempo. É hora de se acostumar que há engarrafamentos e os restaurantes têm filas.
E temos que entender que esses trabalhadores precisam de um lugar para dormir. E perceber que a colônia não tinha mais serventia. Nosso passado, agora, é casa para o futuro.
Mas mesmo ciente de tudo isso, fraquejei quando liguei para meu pai para contar que tinha visitado a colônia. Sabendo como o "seu Luís" fica quando alguém fala/faz alguma coisa para a Ipiranga, fiz um pedido:
- Pai, não mostra a colônia para o vô.
Herança de Família
"Pai, não mostra a colônia para o vô"
Correspondente de Zero Hora em Rio Grande descreve impressões ao visitar antiga Colônia de Férias da Ipiranga
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