É noite de quinta-feira, 11 de agosto. Michael Phelps acaba de conquistar o tetracampeonato olímpico dos 200m medley no Estádio Aquático. Seus concorrentes na prova saem da piscina com agilidade, apoiam as duas mãos sobre as bordas e dão o impulso com a ajuda dos braços para deixar a água.
O mais vitorioso atleta de todos os tempos parece um senhor de 80 anos. Sobe lentamente, degrau a degrau, a pequena escada. Com o peito arfante, levanta as mãos para agradecer à torcida. Terá pouco tempo de recuperação até nadar a semifinal dos 100m borboleta. A impressão é de que aquele Phelps exausto não terá a menor condição de competir logo mais.
Depois, aparece no pódio, mas sua cabeça está na próxima prova. Antes de ter o nome anunciado, alonga os braços e dá leves chutes no ar, balançando as pernas para soltar a musculatura. Está presente de corpo, não de alma. Até que o entregam mais um ouro, o quarto que recebeu no Rio, e o hino americano começa a tocar.
Aí põe a mão no peito e seus olhos marejam. Dá um suspiro fundo que denuncia a emoção. Parece que é sua primeira conquista, apesar de ser o 22º ouro e a 26ª medalha em Jogos Olímpicos. Ele nem sabe, mas superou, com o 13º título em provas individuais, uma marca que perdurava há 2168 anos. Leônidas de Rodes, ainda na era antiga dos Jogos, tinha 12 campeonatos, os últimos conquistados em 152 a.c.
Trinta e seis minutos depois da saída cambaleante da água nos 200m medley, seis minutos após deixar o pódio, Phelps cai na água de novo. Nos primeiros 50m de sua semifinal, bate na última colocação da bateria. Recupera-se na metade final e termina em segundo, garantindo seu lugar na final do dia seguinte.
No Rio, Phelps mostrou ao público o homem, quando nas outras Olimpíadas só aparecia o nadador de resultados extraterrestres. Cenas como a das lágrimas no pódio dos 200m medley somaram-se à presença constante da família nas arquibancadas para mostrar que o mito é de carne e osso. Ao mesmo tempo, misturaram-se à excelência de seu desempenho. Aos 31 anos, nadou todos os dias entre o domingo, 7 de agosto, e o sábado, 13. Voltou para casa com mais cinco ouros e uma prata, totalizando incríveis 23 ouros e 28 medalhas na carreira.
O multicampeão é metódico quando entra em cena. Segue um roteiro herdado dos tempos em que estava no auge. A expressão fechada, os fones de ouvido, o olhar distante. O Phelps atleta parece ganhar já na antessala da piscina, onde o lado humano, com suas fraquezas, fica de lado. Na hora de competir, a máquina de nadar toma conta.
O ritual pré-prova termina já em cima do bloco. Quando finalmente faz-se silêncio no estádio, Phelps alonga os braços gigantes atrás das costas curvadas e os solta com violência para dar dois abraços sobre o próprio corpo. Os membros são tão grandes que as mãos atingem o meio das costas, produzindo dois estalos secos que ecoam pelas arquibancadas mudas. Finalmente, deixa os braços suspensos e aguarda a largada esfregando o polegar e o indicador das mãos. O sinal soa e começa a mágica que o mundo se acostumou a ver nos últimos 12 anos.
O primeiro indício de que a despedida será vitoriosa vem no domingo, 7 de agosto, em sua primeira aparição nos Jogos. Phelps é escalado para o revezamento 4x100m livre, uma prova em que os Estados Unidos estão entre os candidatos ao título, mas não são favoritos destacados.
Ele nada a segunda perna do revezamento. Quando entra na água, a equipe está na segunda colocação. Phelps, que não é especialista nos 100m livre, faz os EUA assumirem a ponta que não escapa mais. O primeiro ouro está garantido, e ele dá abraços paternais nos jovens Caeleb Dressel e Ryan Held, que se debulham em lágrimas no pódio.
O primeiro título individual vem na terça-feira, 9 de agosto, quando vence a difícil prova dos 200m borboleta. Na premiação, escancara, pela primeira vez, o sentimento de mais um título. Chora um pouco, ri um outro tanto. Vê-se que ali está um homem diferente. De lambuja, ganha o terceiro ouro no revezamento 4x200m livre.
Na quarta, 10 de agosto, prepara-se para nadar à noite as semifinais dos 200m medley. Após a primeira semifinal, Bradlee Ashby, nadador da Nova Zelândia, passa pela área de entrevistas e, após conversar com um repórter de seu país, faz questão de parar ao lado de uma das televisões e acompanhar a segunda semifinal, que Phelps vence.
O menino de 20 anos fica imóvel, boquiaberto. Quando fala, é para comentar sobre a técnica da braçada, a eficiência da pernada, a perfeição do nado do americano. Depois, Phelps passa pela mesma área de entrevistas e dá um show de humildade e reverência aos adversários. Mesmo na prova que dominou por 12 anos, diz ter em Ryan Lochte um dos adversários mais complicados da carreira. E sobre o brasileiro Thiago Pereira, sentencia:
– Na final de amanhã, com o Thiago, este lugar vai explodir.
A sexta-feira, 12 de agosto, serve para mostrar que sua humildade não é falsa modéstia. Depois da maratona física e emocional da noite em que nadou duas vezes em menos de 40 minutos, Phelps vai para a final dos 100m borboleta sabendo que será o ouro mais difícil de conquistar. Termina em um incrível tríplice empate com o sul-africano Chad le Clos e o húngaro Laszlo Cseh na segunda colocação. O trio é batido pelo jovem Joseph Schooling, de Cingapura. Na premiação, nenhum sinal de frustração. Parece divertir-se com o inusitado de dividir o segundo degrau do pódio com mais dois nadadores.
Depois, conversa longamente e se diverte com o campeão, enquanto nas redes sociais já circula uma foto de 2008 em que Schooling, ainda criança, posa ao lado de um Phelps já consagrado.
O apoio da família
Nicole Johnson não rejeita nenhum pedido de selfie de torcedores. A modelo, noiva do campeão, sempre acompanhada da mãe e da sogra, Debbie Phelps, senta em meio aos espectadores. Não tem medo de interagir. Com o bebê Boomer, de apenas três meses, no colo, desdobra-se entre a atenção aos fãs, os cuidados ao filho e a torcida pelo noivo. É o ponto de contato do público com a lenda.
Quando um espectador brinca e pergunta se Boomer será nadador quando crescer, a resposta de Nicole é dura, mas dita sem qualquer tom de agressividade na fala:
– Ele vai ser o que tiver vontade de ser.
Debbie também é despojada. Em uma das noites, faz amizade com um casal de brasileiros sentados na primeira fileira de arquibancadas – a família Phelps estava na segunda. Conversa, ri e gesticula pedindo para pular para o setor mais próximo da piscina quando o filho estiver no pódio. O casal consente sem pestanejar.
A presença da família indica a transformação vivida pelo nadador nos últimos dois anos. Preso por dirigir embriagado em 2014, quando estava afastado da natação, Phelps chegara ao fundo do poço. Internado em uma clínica de reabilitação, recuperou-se dentro e fora da piscina.
Convencido de que a volta ao esporte lhe faria bem, decidiu tentar mais uma Olimpíada. Temia que, dali a 20 anos, questionasse, sem saber a resposta, o que poderia ter acontecido se viesse ao Rio. A reviravolta passou pela natação, mas não só por ela.
Nicole era um romance antigo que não ia adiante. Em 2015, noivaram. Phelps também tratou de reatar a relação tumultuada com o pai, a quem culpava pelo divórcio com Debbie quando ele tinha nove anos. Enquanto tratava de voltar a ser o maior atleta do mundo, preocupava-se em ser uma pessoa melhor, uma tarefa em que havia falhado ao deixar as piscinas pela primeira vez, após a Olimpíada de Londres.
Embasbacado pelas vitórias do americano e enternecido por sua personalidade, o público procurava Nicole, posto avançado do atleta nas arquibancadas do Estádio Aquático, para parabenizá-la. Encontrava a mesma simpatia dos sorrisos do campeão no pódio.
Sua imagem a balançar um Boomer que chorava durante a premiação dos 200m peito feminino, na quinta-feira, era simpática. Uma celebridade se mostrava ali como uma mãe atenciosa, mas com dificuldades para acalmar seu bebê, como qualquer pai ou mãe.
Logo depois, começou a final dos 200m medley e, para azar de Boomer, o estádio "explodiu", como previu seu pai um dia antes. Não foi fácil colocar o pequeno para dormir, mas ao final da prova, Phelps já tinha mais um ouro e o bebê, como se sentisse a felicidade do pai, finalmente relaxou nos braços da mãe.
O Phelps emotivo aparece no Rio
Antes de nadar a última prova de sua carreira, Michael Phelps falou com Ray Lewis, ex-jogador de futebol americano e um dos amigos que o encorajaram a voltar às piscinas. Foi importante para que se motivasse para os derradeiros metros da carreira.
O revezamento 4x100m medley é um de seus eventos favoritos, então nada mais apropriado que a cortina se fechasse ali. Antes de ir para a piscina, reuniu-se com os companheiros Nathan Adrian, Cody Miller e Ryan Murphy.
– Não sei se foi o papo mais apropriado para antes de uma prova, mas acho que alguém falou sobre a honra de fazer parte daquele momento – admitiu Adrian, após a conquista do ouro.
No primeiro dia, quando venceu o revezamento 4x100m livre, Phelps esperou até o último momento para tirar o casacão e os fones de ouvido antes de entrar na água. Parecia mais tranquilo do que no sábado, 13 de agosto, último dia da natação no Rio. No revezamento medley, já estava pronto para pular quando o primeiro americano deixou a piscina – Phelps seria o terceiro a nadar.
Mais uma vez, caiu na água em segundo e saiu em primeiro. Confirmada a vitória, o quarteto americano se juntou de novo. Phelps falou sobre o privilégio de compartilhar a despedida com aqueles companheiros, ao que Adrian colocou a mão sobre sua cabeça e, em um gesto carinhoso, a fez repousar sobre seu ombro.
Na entrega da medalha, olhos vidrados para ver o momento histórico acompanharam, como se tornou regra nesses Jogos, um Phelps emotivo, algo que Miller admitiu ter percebido no parceiro ao longo da semana.
– Eu disse que o mundo veria quem eu sou, e esse sou eu – disse Phelps após a despedida.
O Rio de Janeiro testemunhou a passagem do bastão do nadador para o homem Michael Phelps. Agora que o conhecemos, sabemos que ele pode ser tão brilhante quanto o atleta.
*ZHESPORTES