Antônio Carlos Gouveia, o Carlão, não perdeu os traços de personalidade que o transformaram em capitão da seleção de vôlei masculino campeã olímpica em Barcelona 1992. Aos 51 anos, o acreano não tem medo de expor suas opiniões e fazer críticas.
As análises, mesmo que duras, são feitas com voz ponderada, em contraste com o turbilhão de sentimentos que exibia em quadra. Carlão passava a imagem de ser mais coração do que cabeça quando atuava, mas o espírito questionador sempre esteve lá. Agora, ele o canaliza para comentar jogos de vôlei no SporTV, função que desempenhará durante a Olimpíada do Rio. E ele segue não economizando nos ataques, como demonstra nesta entrevista concedida por telefone a ZH na manhã da última quinta-feira.
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A Olimpíada deixará um legado para o esporte brasileiro?
Acho que tudo passa por uma política clara de esportes, algo que o Brasil não tem. Não falo só do alto rendimento, mas de uma política de esportes em que todos tenham acesso. O esporte é uma ferramenta espetacular de inserção na sociedade, de educação. Perdemos uma grande oportunidade nesse sentido. Poderíamos ter desenvolvido o esporte escolar, por exemplo. Tive a chance de conhecer o sistema na França, em que eles pegam moleques de sete a 14 anos e formam núcleos de todas as modalidades, com profissionais especializados para pinçar quem tem mais potencial. Se não servir para ser atleta, já vale a experiência de ter participado de um projeto importante. Isso é bancado pelo Estado. Claro que o Brasil tem problemas sociais mais sérios do que lá, mas o caminho seria por aí. A gente continua patinando nisso. Tivemos Pan-Americano (no Rio, em 2007), Copa do Mundo (em 2014), agora a Olimpíada, e não aproveitamos.
Houve um forte investimento no alto rendimento, e a tendência é de que o Brasil tenha o melhor resultado de sua história. Isso pode mascarar os problemas que você menciona?
O resultado positivo sempre pode mascarar alguma coisa. O fato de a Olimpíada ser no Brasil trouxe esse investimento bem direcionado. Isso é normal. A responsabilidade do Comitê Olímpico é com o esporte de alto rendimento. Está fazendo a parte dele. Agora, vou dar um exemplo: o COB teve de tomar iniciativas para cuidar do esporte escolar. Não é sua função. Mas teve de fazer porque ficou um buraco no meio. É a base. O país-sede sempre consegue excelentes resultados, e o trabalho, nesse sentido, foi feito. Agora, infelizmente, isso passa. Um projeto bem feito, bem estruturado, ainda falta. A comunidade esportiva deveria se conscientizar disso. Passa pela valorização do professor de educação física, que é muito desvalorizado.
A gestão esportiva no Brasil é alvo frequente de críticas. Ela vai melhorar após a Olimpíada?
É o que a gente espera. Principalmente em relação às confederações e federações. Existe um vício muito grande. Toda vez que você fica por 10, 15, 20 anos à frente de uma entidade, cria-se um curral. São pessoas que não abrem espaço para uma nova gestão. As eleições nessas entidades acontecem sem a divulgação correta. Presidentes de confederações são eleitos e reeleitos sem que exista espaço para novas ideias e pensamentos.
Agora há uma lei nova para restringir as reeleições de dirigentes de entidades esportivas.
Sim, e eu acho que deveria ser proibido, também, entrar o filho, o primo, o tio. Se não, continua a mesma coisa. O sujeito está ali, daqui a pouco prepara outra pessoa e o vício persiste. Não existe uma opção.
Nas últimas semanas, vimos uma série de problemas relacionados à organização dos Jogos. Até que ponto isso pode prejudicar o evento?
A gente teve essas notícias ruins em relação à estrutura da Vila. Já participei como jogador e tive a oportunidade de trabalhar em Olimpíadas. Óbvio que existem alguns problemas. Em Barcelona, foi onde vi a melhor estrutura. Eram apartamentos de três quartos, ficava um grupo em cada um dos apartamentos. Não tinha nenhum luxo, mas tudo funcionou bem. O que está acontecendo pode influenciar até os resultados dos atletas. É muito importante chegar e ter a acomodação bacana. Algumas reclamações são exageradas, mas é decisivo ter essa tranquilidade de dormir legal, boa alimentação e o transporte. Já se sabia há muito tempo que teríamos a Olimpíada e, na realidade, foi um vacilo. O mais importante é tentar resolver e não se eximir de culpa nas falhas. Eu acredito que as coisas vão acontecer normalmente, sem muitos problemas.
Você vê algum motivo para que esses problemas tenham aparecido?
Participei de uma palestra no SporTV em que foi uma pessoa da organização para explicar questões da preparação. Eu o questionei sobre a viabilidade de realizar este tipo de Olimpíada, se não seria melhor compartilhá-la com outros Estados do país. Até perguntei como seria em 2020, no Japão, se ficaria tudo concentrado em Tóquio. Por que não compartilhar isso para diminuir os custos? Pelo que observo e pelo que tenho lido sobre isso, acharia importante que os custos fossem diminuídos e diluídos. Esse tipo de Olimpíada, com tudo em um lugar só, não é o ideal.
Mesmo que a Olimpíada tenha essa característica de cidade-sede, e não um país-sede?
Exatamente. Pode ter a cidade-sede, mas que seja mais compartilhado. Em relação à Baía da Guanabara, esse palestrante chegou a dizer que a limpeza era uma utopia. Demanda muito tempo. Agora, por que não se usou Búzios, que é uma das melhores raias para velejar? Lars Grael sabe, Robert Scheidt sabe. Espero que não aconteça nenhum tipo de acidente com um velejador de destaque. Havia outras possibilidades. No Brasil, alguns esportes poderiam ficar no Sul, outros com o Sudeste, com o Nordeste. Parecido com o que é a Copa do Mundo. Facilitaria a operação.
Ficou pesado financeiramente para o governo do Estado do Rio?
Isso. Pegou em um momento muito ruim. Essa pessoa que nos deu a palestra respondeu que era bem possível que isso acontecesse no Japão. Eles estão esperando essa experiência do Brasil para decidir.
Independentemente da questão esportiva, da preparação dos atletas, há um impacto sobre o público com as notícias de problemas de estrutura, o que causa uma rejeição ao evento. Você acha que isso vai prejudicar a Olimpíada?
O envolvimento do público é a coisa mais importante, tanto que há o revezamento da tocha, passando por vários lugares do país. Isso já prepara as pessoas para o evento. É muito bonita a participação, o envolvimento. As notícias negativas em sequência prejudicam, acho que há alguns exageros, mas em vários aspectos há razão em se fazer a crítica. Por outro lado, espero que o público se envolva bastante com a Olimpíada porque é uma oportunidade ímpar da garotada ter contato com ídolos, por exemplo.
Um dos pontos contestados é a utilização de recursos públicos para sediar o evento. Vale a pena fazer esse investimento?
Existe uma estimativa de retorno, mas me preocupa o que aconteceu na Copa do Mundo, com a construção de 12 estádios. Não precisava tanto. Algumas arenas vão ficar obsoletas, largadas, por que não há torcida para frequentar. Pra que construir um estádio daquele em Brasília? Eu sou do Norte, nasci em Rio Branco, mas para que construir uma arena em Manaus? Tem de existir um planejamento. É muito caro manter uma estrutura dessa.
Você acha que na Olimpíada isso foi melhor planejado?
Talvez. Especialmente se a gente ver uma utilização importante depois do evento. Se fez um Parque Olímpico, com várias arenas. São lindíssimas, maravilhosas. Espero que depois não fiquem largadas. Eu tive o desprazer de ver as arenas abandonadas, cheias de mato, em Atenas, depois dos Jogos de 2004. A Olimpíada pesou muito na crise que a Grécia viveu posteriormente. Foram pouquíssimas as Olimpíadas que deram lucro. Temos de nos inspirar nos bons exemplos, mas, pelo histórico, é complicado. Esperam-se mais turistas, mas o turismo no Brasil não é bem trabalhado. O espelho tem de ser Barcelona, onde o local em que foi feita a Vila Olímpica era um lixão. Eu voltei lá 10 anos depois e não reconheci a Vila. Fui no mesmo apartamento que a gente ficou, conheci as pessoas que moram lá. Fiquei impressionado, tudo funcionando, aquela área ficou muito bonita. Não dá para usar uma quantidade enorme de recursos públicos, principalmente no Brasil, com deficiências enormes de saúde, segurança e outros setores, sem essa expectativa clara de retorno. Óbvio que existe um legado de estrutura, tenho certeza de que muita coisa vai melhorar no Rio.
O quanto a cidade será transformada?
Muita coisa boa vai ficar. A linha nova do metrô é uma grande evolução. Mas você vê, é algo que já deveria ter ficado pronto, mas temos esse defeito no Brasil, a nova gestão não dá seguimento aos projetos da antiga. Uma estrutura de metrô como eu vi em Londres não se constrói em 10 anos. O transporte em Londres foi o mais incrível da Olimpíada. Tinha motorista, tinha carro. Fiquei quase 30 dias trabalhando e não andei de carro. Tudo funciona. Isso demanda tempo e planejamento.
Como você vê a preparação do vôlei e das duplas do vôlei de praia?
Estou gostando muito. Na quadra, o Grand Prix e a Liga Mundial foram ótimos. O feminino foi campeão, mas o mais importante foi a possibilidade que o Zé Roberto teve de testar várias jogadoras. Acho que no feminino a base é um pouco mais sólida do que no masculino. São mais opções de trocar o time no meio de um set, surpreender o adversário. Ainda considero os Estados Unidos a seleção mais forte, até pelo projeto que eles têm, com muitas peças à disposição. No masculino, temos uma sequência de perdas de jogadores importantes há alguns anos, especialmente na posição de ponteiro-passador, como tivemos com o Murilo agora. Mas se você lembrar, antes disso, em Atenas, tínhamos Giba, Dante, Nalbert e Giovane nessa posição. Mesmo assim, a Liga Mundial foi muito boa, vimos jogadores ganhando confiança, crescendo muito de rendimento.
E na praia?
Estamos muito bem. O masculino é mais perigoso porque é mais equilibrado. O Alisson e o Bruno Schmidt formam a dupla mais forte, mas o Evandro e o Pedro Solberg podem surpreender. No feminino a gente tem a Bárbara e a Ágatha, uma dupla operária, muito bem preparada. A Larissa e a Talita têm uma categoria maior, com a experiência da Talita. Acho que, entre a quadra e a praia, sem qualquer ufanismo, podemos conquistar quatro medalhas.
Desde a época de jogador, você teve a característica de assumir posições críticas quando achava necessário. Falta esse tipo de postura na nova geração de atletas?
Acho que falta um pouco. As pessoas não querem se incomodar, questionar. Em uma seleção, por exemplo, isso faz parte. Tem de ter jogadores que questionam, não dá para deixar tudo nos ombros do técnico. Você tem de fazer as críticas construtivas, não é fazer por fazer. Coisas pontuais, o que você vivenciou. É uma forma valiosa de auxiliar. Tudo está muito superficial hoje, os atletas têm de ter mais voz. Buscar participar da política esportiva, da gestão, estar presente. O atleta tem de ter a liberdade de criticar, mesmo que esteja dentro do sistema. Não se pode ter essa visão de que, criticando, ele está “cuspindo no prato que comeu”. Mas tem de ser responsável, não sair como se fosse uma metralhadora, criticando por criticar.