Em 1977, Renée Richards foi a primeira atleta trans a disputar o Aberto dos EUA de tênis. Em 2003, o Comitê Olímpico Internacional publicou a primeira resolução sobre atletas trans nos Jogos — que seriam atualizadas em 2015. Em 2017, o Brasil teve a primeira atleta trans no vôlei brasileiro, quando Tifanny recebeu autorização da Federação Internacional de Vôlei para se inscrever em ligas femininas.
Um ano depois, Pat Manuel fez sua primeira luta após a transição de gênero e se tornou o primeiro homem trans a vencer um duelo profissional no boxe. Há dois anos, aos 43 anos, a neozelandesa Laurel Hubbard fez história ao se tornar a primeira mulher trans a competir na Olimpíada.
No mundo e no Brasil, histórias como essas aparecem semanalmente. É o caso de Gabriel, homem preto e trans, que sonha ser jogador de futebol e teve sua vida contada no Globo Esporte, da RBS TV, nesta semana. Mas ele não nasceu assim. Nasceu como Gabriela, em 17 de junho de 2004, como a segunda filha de Lorena Rodrigues Amaral, maquiadora. Uma "diva", nas palavras da mãe. Sempre maquiada e com lacinhos no cabelo.
Mas cresceu vendo Tales, seu irmão, hoje com 22 anos, jogar bola — e sempre quis jogar junto. Gabriela começou na escolinha, treinando junto com os guris.
Passou em um teste para as categorias de base do Inter feminino e chegou a jogar uma temporada nos profissionais do Juventude. Foi quando começou a entender e a conseguir comunicar como queria ser definida.
— Primeiramente, começa com "eu sou bi, eu sou lésbica", todo esse processo — conta a mãe.
Mas o tempo trouxe outra forma de se ver, se sentir e se dizer para o mundo.
— Eu falei: "Mãe, eu não quero mais ser chamado por ela, quero ser chamado por ele, e meu nome é Gabriel".
Ele se sentia Gabriel, um homem trans.
— Eu nunca me identifiquei como mulher. Sempre fui tentando descobrir o que eu era e me descobri assim — contou.
Uma revelação que para ele também serviu como uma libertação, apesar do medo. Não à toa. Segundo dados coletados e analisados pelo Grupo Gay da Bahia, em 2022, no Brasil, 256 pessoas da comunidade LGBT+ foram vítimas de morte violenta.
O país continua sendo o país onde mais LGBT+ são assassinados no mundo: uma morte a cada 34 horas. Esses dados se baseiam em notícias publicadas nos meios de comunicação, sendo coletados e analisados pelo grupo. Um sentimento não só do Gabi, mas também da família.
— Pelo preconceito, né? Não vêm as pessoas dizerem que não tem, porque têm — argumenta Vera Teresinha de Oliveira Rodrigues, a avó do Gabi.
— Já somos de uma família negra, e aí uma questão de ter uma pessoa trans. Como vai ser a reação das pessoas? Esse é o maior medo de quem o ama — questiona a mãe.
Um dos primeiros passos foi fazer o nome social, um documento com o novo nome para o mundo. A família ainda está se acostumando. Enquanto falava com a reportagem, a avó utilizou o pronome feminino para se referir a Gabriel.
— Minha avó me conhece a vida toda, ela vai errar. Eu tenho que ir com calma, entender que ela também está conhecendo tudo agora — entende Gabriel.
Gabi tem sido frequente no consultório trans, dentro da Unidade de Saúde Santa Marta, no Centro de Porto Alegre. Com as cores da bandeira trans, o rosa e o azul claro, é em um dos consultórios que ele passa pelo processo de hormonização — em que recebe periodicamente doses de testosterona, o hormônio masculino, via injeção intramuscular ou subcutânea a cada duas ou três semanas.
— Felicidade. A cada vez que a injeção entra, eu sou mais o Gabriel — foi como ele descreveu a sensação de receber o medicamento.
Mas Gabi tem um sonho de criança. Nascido no país do futebol, quer ser jogador, mais especificamente goleiro, algo ainda restrito no universo LGBT+.
— Sempre gostei de jogar futebol e quero ser uma das primeiras pessoas trans a jogar futebol em um time masculino. É uma barreira que eu vou enfrentar e que eu quero derrubar — disse Gabriel, que ainda procura um espaço para praticar o esporte que tanto ama.
Apesar dos percalços tradicionais de quem ainda busca um lugar dentro da sociedade, a relação entre ele e a família é baseada em respeito e amor. Todos abraçaram o Gabi e também a causa LGBT+. Lola, a mãe do menino de 19 anos, foi buscar apoio e orientação na ONG Mães pela Diversidade, um coletivo de mães e pais de pessoas LGBT+, criado em 2015, em São Paulo, mas que já tem representantes em 14 Estados do Brasil.
— A sociedade precisa entender que não existe nada de errado nos nossos filhos. Um menino, quando é chamado de "veado" com sete anos, ele não sabe o que aquilo ali significa. Ele só sabe que aquilo é ruim e sofre. Por que a gente perpetuar esse sofrimento das pessoas? — reflete Renata dos Anjos, coordenadora da ONG no Rio Grande do Sul.
O acolhimento que ele teve na família e que sua mãe encontrou no "Mães pela Diversidade", Gabi ainda busca em alguma das dezenas de quadras de futebol que existem em Porto Alegre. Como milhares de pessoas trans se defendem Brasil afora, ele quer defender embaixo das goleiras da Capital.
LGBTEX FC, o time que acolheu Gabi
— Eu ainda tenho um pouco de receio, sabe? Homem trans — foi isso que Gabi respondeu sobre já ter procurado alguma oportunidade para jogar futebol.
Depois de já ter atuado no futebol feminino, inclusive no elenco profissional do Juventude, tenta encontrar um lugar seguro para seguir jogando. Ele tem um objetivo: quer ser uma das primeiras pessoas trans jogando futebol em um time masculino.
Enquanto procurava um lugar para jogar, uma mensagem no celular da sua mãe, Lorena Rodrigues Amaral, mudou o rumo das coisas.
“Oi. Tudo bom? Olha só, teu filho já conseguiu time para voltar a jogar futebol?”
Foi um suspiro de esperança para o Gabi e para a sua família. A sequência, então, só os deixou ainda mais felizes.
“Uns amigos montaram um time só de homens trans, é bem divertido, se ele quiser conhecer.”
Foi praticamente um novo rumo no caminho de Gabriel. O LGBTEX FC é um time feito de pessoas trans, onde Gabi poderá se enxergar um pouquinho em cada um dos integrantes da equipe. Criado em junho de 2022, eles se definem como um time plural. Um terço dos integrantes são homens trans, metade tem entre 19 e 23 anos — exatamente a faixa do Gabi.
— A gente sabe como é difícil para pessoas trans se inserirem dentro do esporte — diz Natasha Ferreira, administradora da equipe.
— É bem difícil se inserir no esporte depois da transição — ressalta Gabi.
Os participantes não apenas jogam futebol, mas também diariamente combatem casos de racismo, homofobia, transfobia e machismo.
Na primeira vez que Gabi esteve na quadra ao lado dos novos colegas, o acolhimento foi mais do que perceptível. Além da conversa, para explicar como funciona o time e a dinâmica, ele recebeu um abraço de todos, em meio a gritos de “Gabi, Gabi, Gabi”, um afago físico, mas também na alma de quem vem passando por uma transformação.
O LGBTEX FC é um lugar seguro, respeitoso, com todas as opções sexuais e de gênero, para que as pessoas possam ser quem elas realmente são. Um espaço que permitiu muita gente voltar a ter contato com o esporte.
— Eu já me soltei, saí fazendo o que eu não fazia nos outros times, que eu demorei para me soltar. É uma perspectiva de futuro, óbvio. Acho que eu vou conseguir chegar aonde eu quero no futebol — comemora Gabi.
E um novo ciclo, seja no futebol ou na vida, precisa de uma comemoração. O primeiro dia dele no LGBTEX FC foi, casualmente, o dia do aniversário de 19 anos de Gabriel. Ano novo, cheio de inúmeras possibilidades, de conhecer caminhos.
— Eu não posso parar, não posso desistir dos meus sonhos — respira ele, que agora continuará seu processo de hormonização, de transição e, quem sabe, logo estará em alguns dos milhares clubes que existem no Brasil.
Gabriel Amaral da Rocha, homem trans, 19 anos, e cada dia mais próximo de alcançar o seu sonho.