Garrincha sempre misturou a indução e antecipação em campo. Quando a bola estava nos seus pés na ponta direita, seu movimento induzia um João qualquer a movimentar o corpo para um lado. Antevendo a movimentação, aplicava o drible indo na outra direção. Seus últimos dias de vida foram assim. Afundado no alcoolismo, impulsionou o próprio fim, anunciado por ele próprio.
Em 19 de janeiro de 1983, um dia antes de sua morte, Mané, com 49 anos, pressentiu que lhe restava pouco tempo. Foi a uma casa lotérica em Bangu, no subúrbio do Rio de Janeiro, e fez uma aposta na Loto. Ao chegar em casa, entregou o comprovante para Vanderléia, sua esposa. O prêmio, segundo ele, seria dela, pois quando saísse o resultado ele não estaria mais vivo.
Era o fim de ser de extremos. Um homem que ganhou fortunas, mas acabou pobre. Alguém que foi amigo de muitos, mas morreu sozinho. Um jogador que driblou os maiores zagueiros, mas parou na marcação do alcoolismo. Um ser chamado de "A Alegria do Povo", mas que acabou na tristeza. Um camisa 7 que moveu multidões, mas viveu isolado o último momento antes de virar eternidade.
Não é que Garrincha não tenha feito dinheiro. Ganhou uma fortuna para os padrões daqueles tempos. Comprou casas e apartamentos nos bairros mais nobres do Rio de Janeiro. Pouco a pouco perdeu tudo. Restaram oito imóveis, deixados para cada um dos seus filhos com Nadir, sua primeira esposa. O "Anjo das Pernas Tortas" levava uma vida suburbana.
Junto com Vanderléia, morava em uma casa de três quartos em Bangu. O aluguel de 46 mil cruzeiros era pago pela CBF. O casal vivia do salário de 275 mil cruzeiros que o ex-jogador recebia para dar aulas de futebol na Legião Brasileira de Assistência. O enterro foi realizado em Pau Grande, distrito de Magé, na Região Metropolitana do Rio, onde ele nasceu. Com a família sem muitos recursos, os custos foram bancados pelo cantor Agnaldo Timóteo.
Garrincha teve muitos amigos, mas em seus últimos dias esteve esquecido. O abandono decorria devido aos problemas com o alcoolismo, de acordo com a viúva. Em meio a dor da perda, ela não poupou críticas ao Botafogo, clube onde o marido viveu seu ápice, à CBF e aos ex-companheiros.
A bandeira alvinegra chegou a ser retirada do caixão onde o corpo jazia. O ato foi uma ação indignação dos familiares pelo que se considerou um descaso do clube com o ídolo botafoguense. Após os ânimos se acalmarem, o símbolo foi recolocado no lugar.
— Agora estão todos aqui no velório, mas nunca foram lá em casa. A impressão que tínhamos era que o Garrincha era um problema para todos eles — disparou a viúva à época.
Ela relatou que na última quinzena de vida, Garrincha bebia compulsivamente. Nos últimos três dias, acrescentou, ele nem sequer se alimentou. A morte foi permeada pela tristeza e pela solidão. O homem que levava um povaréu ao Maracanã morreu sem ninguém por perto. Suas últimas companhias foram a pericardite, a congestão pulmonar e a esteatose hepática, todas doenças decorrentes do alcoolismo.
Garrincha começou a passar mal na tarde de 19 de janeiro. Tentou se levantar da cama, mas deu de cara no chão. Por volta das 17h, foi levado a um posto do Inamps (antigo SUS). Logo foi transferido para uma clínica. Estava zonzo, mas falava e apresentava consciência. Recebeu soro e foi colocado em repouso. Quando o enfermeiro retornou para ver o seu estado, Garrincha, assim como o pássaro que batiza o seu apelido, já tinha voado, deixando órfãos 13 filhos e os amantes do futebol.
Garrincha, a alegria do povo
Pernas de comprimentos diferentes, o joelho direito com valgismo, o esquerdo varismo, um desvio na coluna lombar. Nada indicava que uma pessoa com essa compleição física pudesse jogar futebol. Mas Garrincha desafiou a lógica. Em um treino contra o Botafogo, encontrou o seu primeiro João, apelido que dava a quem o marcava. O nome verdadeiro desse João era Nilton Santos, já uma entidade do futebol brasileiro. Driblado tantas vezes pelo ponta adversário, o defensor, ao terminar a atividade, se dirigiu aos dirigentes do clube e fez um pedido:
— O garoto é um monstro. Acho bom vocês o contratarem. É melhor ele conosco do que contra nós.
Não à toa que o apelido de Nilton é a "Enciclopédia do Futebol". Ele sabia do que falava. O ano era 1953, e o lateral-esquerdo nunca mais precisou se preocupar em campo com Garrincha. Juntos, nunca perderam uma final. Seja pelo Botafogo, seja pela Seleção Brasileira.
Ele foi uma espécie de anjo-protetor da carreira de Garrincha. Em 1958, os jogadores da Seleção Brasileira passaram por uma avaliação psicológica. Ciente das limitações intelectuais do colega, Nilton Santos pediu para que o psicólogo João Carvalhaes pegasse leve com o atacante. Alertou que ele seria importante no Mundial.
Mané somou 38 de 123 pontos possíveis nos testes. Seu corte foi recomendado, mas sua convocação foi mantida pelo técnico Vicente Feola. A partir dali, Garrincha escreveu história retas com pernas tortas.
Entrou no time somente no terceiro jogo, contra a União Soviética. Foi decisivo para o título na Suécia, onde fez um filho com uma mulher que, décadas mais tarde, ele nem sequer recordava o nome. Quatro anos depois, foi o pilar do bicampeonato após a lesão de Pelé na primeira fase da Copa do Chile. Ainda jogou o torneio de 1966.
Pelo Botafogo se eternizou ao longo de 612 partidas, marcando 245 gols e aplicando incontáveis dribles nos Joões que cruzavam o seu caminho. Ainda teve uma passagem obscura pelo Corinthians. Depois, peregrinou por diversos clubes para tentar encerrar os seus dias de jogador com algum dinheiro no bolso.
Sua última partida como profissional ocorreu em 7 de setembro de 1972. A camisa vestida era a do modesto Olaria. Sem o vigor de outrora, Garrincha não foi Garrincha, e o Azulão levou 5 a 1 da Caldense. O adeus definitivo foi em um Maracanã com 150 mil pessoas, em dezembro de 1973. O "Jogo da Gratidão" teve o camisa 7 ao lado de seus companheiros de Seleção Brasileira desafiando um selecionado de craques internacionais, como Andrada, Pedro Rocha e Doval.
Os brasileiros venceram por 2 a 1. A Alegria do Povo recebeu seus últimos aplausos aos 30 minutos de jogo, quando foi substituído.
Garrincha no RS
Enquanto perambulou por equipes de menor cartaz, Garrincha viveu os seus maiores vínculos com o Rio Grande do Sul. No final da década de 1960, o segundo jogador mais famoso do futebol brasileiro vivia um casamento explosivo com Elza Soares. Em julho de 1969, ela desembarcou em Porto Alegre para se apresentar no novíssimo Teatro Leopoldina, localizado na esquina da Avenida Independência com a Rua João Telles.
Pesando três quilos acima do peso ideal, ele a acompanhou e treinou alguns dias no já aposentado Estádio dos Eucaliptos. O Beira-Rio reluzia de novo e estava de portas abertas para receber mais um astro do futebol mundial. Em 3 de julho, ele entrou no gramado da nova casa colorada para jogar pelo Novo Hamburgo.
O clube da Região Metropolitana pagou 2 mil cruzeiros novos para contar com o Anjo das Pernas Tortas por um jogo. Garrincha alimentava o sonho de jogar a Copa de 1970. Era pura ilusão. Suas pernas não tinham mais a mesma força. A potência da casa de Mané estava na garganta de Elza. Embora tenha feito o lateral Jorge Andrade suar, suas jogadas não tinham o mesmo efeito do passado. O Inter venceu por 3 a 1.
— Ele já estava perto do fim. Chegou a dar uns dribles ali pela ponta, mas não tinha mais a mesma velocidade — relatava Tovar, jogador do Inter na oportunidade.
Uma semana depois, ele vestiu o vermelho e branco do Riograndense, de Rio Grande. O jogo comemorativo foi para celebrar os 60 anos de vida do clube gaúcho. A presença para enfrentar o Brasil-Pel, no Estádio Torquato Pontes, custou 1,5 mil cruzeiros novos. As arquibancadas lotaram, mas o craque passou em branco naquele 0 a 0.
A primeira camisa gaúcha a ser vestida por Garrincha foi a do 14 de Julho, de Passo Fundo. Um ano antes daquelas duas partidas, o clube da Região Norte contratou o jogador para enfrentar o Atlântico, de Erechim, que na época jogava futebol profissional. Foi nesse jogo que teve o lance mais cintilante atuando por uma equipe do Sul. Acertou a trave, lance insuficiente para evitar a vitória do adversário por 1 a 0.
O último encontro de Garrincha e Pelé
Nilton Santos e Ademir Menezes estiveram entre os jogadores presentes nos tumultuados velório e enterro de Garrincha. Pelé, com quem formou uma dupla literalmente imbatível na Seleção, mandou apenas flores para a família. A última tabelinha entre os dois havia se dado semanas antes, em uma cobertura na Zona Sul do Rio de Janeiro.
O encontro foi promovido pela revista Placar. Em campo, foram 40 partidas com a amarelinha, com 36 vitórias e quatro empates. Ali, naquela quente tarde carioca, deixaram a conversa rolar. Foram horas de pura nostalgia. Relembraram as conquistas com a Seleção Brasileira. Analisaram o futebol naquele momento, em um diálogo que não envelheceu apesar das quatro décadas de vida.
Reclamaram que o futebol estava muito tático, mecânico em seus movimentos. Lamentaram que os times jogavam muito retrancados. Lastimaram que já não se faziam mais craques como Pelé e como Garrincha.
Descontraídos, cantaram juntos. Garrincha arranhou em um cavaquinho de brinquedo. Pelé dedilhou um violão. Havia um clima de camaradagem, soterrando qualquer tipo de ressentimento entre aqueles dois gênios da bola.
— Que nada! Ele é um safado, virou estrela agora — disparou Garrincha, em uma entrevista ao repórter argentino Carlos E. Bikic, revelada em 2012.
A distância entre o rumo de cada um deles era visível. Pelé era o Rei do Futebol, uma celebridade mundial. Estava bem aprumado para receber o amigo. Garrincha havia se transformado em um homem deprimido, com problemas com a bebida e que vivia longe dos holofotes apesar de toda a sua fama. Não apresentava a mesma elegância. Tanto que um dos repórteres que o buscou em Bangu deu de presente uma camisa para que o ex-jogador usasse durante o encontro. O bate-papo também aflorou as personalidades distintas.
— Foi uma alegria. Fica uma saudade. O Garrincha já não estava bem, mas naquele dia ele não bebeu. Na conversa, o Pelé sempre tinha um tom mais sério, enquanto o Garrincha sempre fazia alguma brincadeira. Às vezes fica um silêncio, e tínhamos que puxar um novo assunto — relata o jornalista Lemyr Martins, um dos responsáveis pela realização da matéria.
Pelé teve sensibilidade. Ao ver a condição simplória de seu ex-companheiro, deu um jeito de um dos seus assessores dar dinheiro para ajudar Garrincha. A quantia, ao que tudo indica, foi aceita de bom grado.
Um novo encontro ficou programado para um futuro próximo. Eles combinaram de ir juntos dar uma aula para as crianças que treinavam com Garrincha. Não deu tempo.