Reza a lenda que um dia, ao ser chamado para uma das orações diárias enquanto sua gata, Muezza, dormia sobre seu manto, Maomé preferiu cortar a manga das vestes, em vez de perturbar o felino. Quando ele retornou, ela teria retribuído o gesto curvando-se para o profeta, que respondeu acariciando suas costas três vezes.
Um conto passado oralmente na tradição árabe, que provavelmente nasceu de histórias mais antigas do que o próprio islã, a passagem ajuda a explicar a reverência que os gatos contam nos países do Oriente Médio e que surpreendeu jornalistas, torcedores e jogadores ao desembarcarem em Doha, no Catar, para a Copa do Mundo.
— Você chega aqui e começa a ver gato, gato e gato. E é completamente diferente, porque eles ficam em ambientes fechados e não acontece nada. As pessoas tratam com absoluta naturalidade. Você está em um restaurante, tem um gatinho andando e ninguém sequer fica dizendo "olha, que bonitinho!". É como se eles fossem pessoas, sabe? — conta o jornalista Diogo Oliver, parte da equipe de GZH que está cobrindo o Mundial. — O gato não chega a ser um animal sagrado, mas ele é muito respeitado.
Os felinos têm à cultura islâmica para agradecer por esse status, uma vez que ela não apenas manteve viva tradições das civilizações egípcias e mesopotâmicas, que reverenciavam gatos desde os dias antigos, como adicionaram novas lendas que reforçam o valor destes animais como companhia — um conto chega a afirmar que a certa altura Maomé foi salvo de uma picada fatal de cobra justamente por um gato.
"O cristianismo sempre encarou os gatos com suspeita. Ao longo dos séculos, a pobre criatura foi acusada de todos os crimes concebíveis, desde roubar o fôlego de recém-nascidos até servir como minion de Satanás", destaca o autor Sam Stall, no livro 100 Cats Who Changed Civilization. "O Islã, no entanto, tem a visão oposta. O gato é tão altamente estimado que é permitido até mesmo nas mesquitas."
Já nascem livres
Além dos templos, restaurantes e shoppings, os felinos também vem desfilando como donos pelos Centros de Treinamento da Copa — inclusive da Seleção Brasileira — como o mundo descobriu nesta quarta-feira (7), durante a entrevista coletiva de Vinícius Jr. Um bichano mais ousado pulou na bancada com os microfones para ficar perto do craque e precisou ser removido pelo assessor da CBF, Vinicius Rodrigues.
Dócil, como só um gato bem tratado por todos consegue ser, o felino até aceitou alguns carinhos de Rodrigues antes de ser pego de surpresa e jogado no chão. O movimento um pouco brusco, que rendeu algumas críticas online, não foi percebido como nada demais por quem o presenciou ao vivo:
— O jeito de você pegar o gato por essa parte de cima do pescoço não é exatamente uma violência. Talvez ele pudesse ter sido mais querido na hora de colocar no chão, mas não chega a tanto. É meio procurar pelo em ovo. Acho que não teve nenhum problema diplomático por conta do gatinho — brinca Diogo.
Rodrigues não foi o único que não pareceu exatamente à vontade com a reverência aos felinos. Na última semana, o atacante Randal Kolo Muani entregou um de seus companheiros de equipe aos jornalistas:
— Ousmane (Dembele) tem medo de gatos. Os gatos ficam andando ao nosso redor quando comemos fora do hotel, e isso o assusta — revelou. — Faz todo mundo rir um pouco!
Apesar do status diferenciado, os gatos não estão acima de toda dificuldade no Catar. O portal Doha News, por exemplo, destaca que a população de felinos nas ruas do Catar aumentou consideravelmente nos últimos anos por causa da covid-19, que levou muitos estrangeiros a deixar o país e também afetou financeiramente muitos cataris.
"Durante o auge da pandemia os animais também foram abandonados desenfreadamente por famílias que antes cuidavam deles devido à fake news que circularam sobre animais de estimação que contraíram o novo coronavírus e infectaram membros da família", acrescenta a publicação.
Desde então, surgiram muitas ONGs para tentar auxiliar os felinos a viver nas ruas ou a encontrar novos lares. A Qatar Animal Welfare Society (QAWS), por exemplo, recomenda que aqueles que desejam ajudar aos animais de rua os alimentem somente uma vez por dia ou em dias alternados, para que eles não dependam de uma só pessoa e percam o instinto de caça. Também é recomendado sempre oferecer água limpa e fresca para os animais, por causa do clima no país.