Se um time vai mal, é mais fácil trocar de técnico do que demitir 22 jogadores. A máxima se transforma em mantra nos clubes Brasil afora. Somente no atual Campeonato Brasileiro, em 12 rodadas foram demitidos 10 treinadores. O recorde dos últimos anos ainda pertence à temporada 2010, quando 32 treinadores caíram durante os nove meses em que o Brasileirão foi gestado.
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O futebol brasileiro tem pressa. Muita pressa. Um levantamento feito pelo jornal mexicano El Economista, de 2002 a 2014, e publicado em outubro do ano passado, apontou que um técnico no Brasil dura em média quatro meses no cargo. Além do Brasil, o repórter Ivan Perez pesquisou ligas como a do México, Inglaterra, Espanha, Argentina, Estados Unidos, França, Alemanha, Colômbia e Itália. A média italiana, a pior depois da brasileira, apontava para pouco mais de um ano a sobrevivência dos treinadores. Nos Estados Unidos, os campeões da paciência com as comissões técnicas, são pelo menos 2,6 anos de permanência em média. Ao publicar o texto, Perez denominou o Brasil como "A máquina de demissões".
- Creio que a realidade dos clubes no Brasil é muito parecida com a dos mexicanos: se não faz uma boa campanha, perde muito dinheiro, em bilheteria e em quadro social. E isso tem uma grande influência nas demissões. Os grandes anunciantes querem estampar suas marcas em times vencedores. Com derrotas, diminuem as chances de buscar mais dinheiro através de patrocínios - pondera Perez. - Não é por acaso que México e Brasil são as ligas mais ricas da América Latina e as que mais demitem treinadores. Não é apenas cultural, é uma questão econômica também - completa o repórter do El Economista.
Nem mesmo os últimos treinadores da Seleção Brasileira foram poupados nos clubes. Dunga foi demitido pelo Inter no returno do Brasileirão de 2013. Mano Menezes não teve o contrato renovado com o Corinthians, ao final da temporada passada, enquanto Luiz Felipe Scolari não resistiu ao fraco desempenho de seu time e pediu para sair do Grêmio (antes que fosse demitido), após a segunda rodada do atual campeonato nacional, e foi para a China. O Brasileirão é democrático e os técnicos caem desde os times em risco de rebaixamento até aos que estão entre os líderes.
- A insensatez e a idiotice dos dirigentes é muito grande - dispara Hélio dos Anjos, o demitido número 9 do Brasileirão. - Muitas vezes o cara é um grande empresário, uma pessoa de sucesso, mas, no clube, se mostra um idiota. O dirigente brasileiro tem um medo impressionante da imprensa. Especialmente nos Estados de menor tradição no futebol, e acaba tomando decisões precipitadas. Mas o técnico brasileiro já está acostumado a trabalhar com essas dificuldades - acrescentou Hélio, que tem 57 anos e está há três décadas na profissão.
O treinador do Goiás expõe uma realidade não tão glamourosa para os técnicos no país: trabalha um ano para receber quase uma temporada depois. Na Justiça.
- Há um desrespeito muito grande com os treinadores. Por não ser uma profissão regulamentada, o treinador às vezes é contratado por uma temporada e demitido no terceiro jogo. O jogador está garantido pela legislação. Veja o caso Kleber x Grêmio (o atacante ganhou R$ 15 milhões do clube na Justiça). Já o treinador trabalha cinco meses e recebe apenas 23 dias. É obrigado a acionar o clube para receber o que é seu por direito. Levei 11 anos para receber do Vasco (treinou o clube em 2001, ganhou a ação na Justiça do Trabalho em 2012). Ainda hoje tenho a receber do Atlético-GO. É uma poupança que você acaba fazendo, mas desgasta - conta Hélio dos Anjos.
Na visão de dirigentes, nem sempre a troca é precipitada. Presidentes de clubes e vices de futebol alegam que precisam lidar com a pressão dos resultados, do vestiário e também de seus associados. Presidente do Grêmio no biênio 2009/2010, Duda Kroeff começou a gestão com Celso Roth, passou por Paulo Autuori, Silas e encerrou o mandato com Renato Portaluppi no comando - e com Marcelo Rospide de interino.
- A troca ocorre quando você sente que o técnico não está mais funcionando. Às vezes, nem se identifica o que houve, mas você sente que o grupo não acredita mais no trabalho - diz Duda.
Mesmo sendo o responsável pelo último título do clube, o Gauchão de 2010, Silas acabou demitido na metade do primeiro turno do Brasileirão.
- Silas foi um exemplo de treinador que não estava mais funcionando. Estávamos entrando na zona do rebaixamento e fiquei com medo. Clube grande sofre mais com essa pressão psicológica. O quadro social também cobra muito. Em tempos de crise, não dá para entrar no Facebook nem no Twitter - conta Duda Kroeff. O ex-presidente lembra ainda que outros técnicos foram marcantes para a sua gestão, mas por motivos distintos:
- O Celso (Roth) sofreu muito com as vaias. Aparecia no túnel e era vaiado. Não troquei por isso, troquei por convicção. O Autuori pediu para sair. Acabaria sendo demitido, mas saiu antes. Foi para o Catar. Fui o único presidente a vender um treinador. A liberação do Autuori para o Al-Rayyan rendeu US$ 500 mil aos cofres do Grêmio. Já o Renato tinha uma sintonia entre a direção e o vestiário. Era admirado pelos jogadores e, nas viagens, era bem mais assediado que nossos atletas.
Com uma rodagem de quase 10 anos entre a presidência e a direção de futebol no Beira-Rio, Fernando Carvalho já vivenciou de tudo com técnicos. Foi do quase rebaixamento de 2002 ao Mundial de 2006, das duas Libertadores ao Mazembe. De Ivo Wortmann a Abel Braga, passando por Muricy, Tite, Joel Santana, Jorge Fossati e Celso Roth, entre outros. Apesar de trabalhar com diversos perfis, na hora de trocar um treinador, Carvalho sempre se valeu das seguintes regras para consolidar uma demissão: quando o técnico perde o comando do vestiário, quando não consegue encontrar uma forma de jogar com grupo que tem, quando há abatimento no ambiente, quando faltam resultados, quando há litígios diários com a direção e, acima de tudo, quando se vislumbra que a sequência não reverterá em vitórias.
- Mesmo seguindo essa cartilha, errei. A demissão do Tite, em 2009, foi um equívoco. Foi uma demissão injusta e errônea. Eu poderia ter resolvido problemas de vestiário, de relacionamentos internos e remobilizar o time com conversas, sem a demissão - reconhece Fernando Carvalho.
O ex-presidente do Inter entende que a filosofia do "perdeu, tá fora" permanecerá por muito tempo regendo as relações entre dirigentes e treinadores no Brasil.
- Somos um país de imediatistas. Na maioria das vezes, se demite por falta de resultados. por pressão da torcida e da imprensa. É uma característica do nosso povo, temos uma visão do "para ontem" em todas as coisas e isso muitas vezes é prejudicial - analisou Carvalho.
Se para o torcedor pedir a cabeça do técnico é algo já incutido no folclore do futebol, para os profissionais, que passam pela incerteza de ter um trabalho interrompido por vezes em questão de semanas, é um drama. Foi pensando na proteção aos técnicos de futebol que cinco ex-treinadores da dupla Gre-Nal passaram a liderar a classe rumo à regulamentação da profissão. Zé Mário, Vagner Mancini, Caio Júnior, Dorival Júnior e Paulo Roberto Falcão formam a diretoria da Federação Brasileira de Treinadores de Futebol (FBTF).
- Queremos resgatar o respeito aos técnicos - anuncia Vagner Mancini, campeão da Libertadores com o Grêmio em 1995 como jogador e ex-treinador do clube.
Mancini é um dos vice-presidentes da FBTF. Conta que a entidade tenta ver uma legislação específica para os treinadores aprovada no Congresso. Entre as solicitações para a classe estão o pagamento de 100% dos salários pelo tempo de contrato assinado, em caso de demissão, que seja incluída uma multa bilateral por quebra de contrato, e que se limite a duas as transferências de técnicos em uma série na mesma temporada.
- O futebol evoluiu, os jogadores tiveram os seus direitos reconhecidos, mas os treinadores foram esquecidos. A profissão sequer é regulamentada. Houve algum avanço, com a exigência do diploma, mas parou por aí. No Brasil, mais de 80% dos técnicos não assina contrato. Muitos acabam trabalhando porque precisam. Mas, quando demitidos, não recebem nada, pois o clube alega que não havia contrato assinado - revela Mancini.
Atual técnico do Vitória, que disputa a Série B do Brasileirão, Vagner Mancini garante que a entidade não é contra uma possível invasão de treinadores estrangeiros no país. Mas cobra melhores condições de trabalho aos brasileiros, para que eles também possam se aprimorar.
- Muitos entendem que técnicos estrangeiros são melhores. Mas ganhamos cinco Mundiais com treinadores brasileiros. O Brasil desvaloriza os seus profissionais. Não somos contra a vinda de técnicos de outros países, mas queremos qualificar cada vez mais o profissional brasileiro para que ele também possa ser exportado - conclui Mancini.
Enquanto as coisas não mudam, a máquina de demissões do futebol no Brasil segue acionada a cada rodada do campeonato nacional. E a culpa por maus resultados segue caindo sobre os treinadores - brasileiros ou estrangeiros.