
O campeonato deveria ter parado até ordem em contrário. Se ninguém sequer ninguém cogitou esta hipótese, então é porque algo está muito errado em nós todos.
Aquele pai vascaíno em pânico, agarrado ao filho pequeno em forma de concha para oferecer-lhe o corpo como escudo durante a pancadaria no Mané Garrincha, não poderia passar batido. Passou. Nada vai acontecer, tirando algumas medidas para esfumaçar a impunidade e aplacar as críticas da hora.
Os corintianos presos em Oruro por suspeita de envolvimento na morte de um adolescente de 17 anos saíram da cadeia direto para os estádios da Copa.Ninguém pensou nesta possibilidade. Eu, você, ninguém. Nenhuma medida preventiva foi tomada.
O pai vascaíno talvez não tenha dinheiro para contratar um advogado. Mas as organizadas têm, e elas buscarão os melhores da praça. Estes advogados, por serem os melhores e custarem caro, escarafuncharão o código penal até encontrar uma maneira de defendê-los e deixá-los livres como se fossem cidadãos normais. Aí virão novas cenas de Praça Tahir, novas medidas paliativas, novas crônicas como esta.
O mesmo filme, enfim.
Assisti, estarrecido, à cena no Mané Garrincha. Lembrei da Praça Tahir, da Faixa de Gaza ou de outra zona conflagrada do planeta. E lembrei também de Dario, que fez história no Atlético-MG e no Inter dos anos 70.
Imagine se hoje ele discorresse acerca de suas habilidades para manter-se estático no ar como um beija-flor? Ou se afirmasse que tem o peito de aço e merecesse ser chamado de Maravilha, o Rei Dadá, a quem apenas príncipes tinham o direito de servir com passes milimétricas - daí o Príncipe Jajá de Jair, do Inter de Caçapava, Falcão e Carpegiani.
E se hoje Renato apostasse com Romário, antes de um Fla-Flu, o clássico das multidões inventado por Mário Filho, que o vencedor seria o Rei do Rio? E se, depois de festejar o título carioca, cobrisse o corpo com um manto dourado, vestisse sapatilhas de veludo, acomodasse uma coroa de diamantes na cabeça e empunhasse o cetro, para ganhar a capa dos jornais, como fez o hoje técnico do Grêmio?
Há mais exemplos. Os sonhos premonitórios de Lima antes dos Gre-Nais. A frase de Oberdan tomando posse da área e decretando que ninguém jamais cabecearia com ele por perto. O pernambucano Manga falando portunhol e se autoproclamando (com razão) Manguita, un Fenomeno.
Qualquer uma destas iniciativas seria recebida com cara emburrada, ódio nas redes sociais e teses de desrespeito ao adversário. Não são. Nunca foram. O futebol é que perdeu a doçura, o bom humor, a capacidade de rir de si mesmo. A inteligência, enfim.
Um drible diferente é motivo para fúria, assim como tocar a bola de primeira pode virar escárnio. As pessoas enxergam em tudo um pretexto para a violência verbal - física ou em 140 toques.
Atear fogo em escola virou brincadeira adolescente, como se viu em Eldorado do Sul. Manifestações de rua encobrem ladrões e depredadores do patrimônio público. A imagem do vascaíno tentando proteger o filho (será que o menino voltará a um estádio ou perdemos este torcedor também?) é o resultado de um longo processo. Que inclui o futebol, mas não é exclusividade do futebol.
Acontecerá de novo, sem que nos importemos tanto assim. Nos acostumamos à barbárie.
E segue o campeonato.