
Quando sai de sua casa no bairro Bela Vista, em Alvorada, todas as manhãs, Caren Ricardo, 37 anos, dificilmente tem hora para retornar. Trancista e extensora de cabelos afro, ela perde as contas de quantas vezes já virou a madrugada atendendo à clientela construída ao longo de mais de 20 anos dedicados ao embelezamento feminino.
Quem frequenta o Poderosas Hair, salão de beleza que Caren mantém no centro de Porto Alegre, sabe que a trancista sempre dá um jeito de flexibilizar a agenda. Mas também sabe que, nas terças e nas quintas, não tem chororô: os atendimentos precisam terminar, no máximo, às 19h. Nesses dias, das 20h em diante, Caren troca o trabalho com as mãos pelo movimento coreografado dos pés.
Do salão de beleza na região central, a trancista vai direto para a quadra da escola de samba Estado Maior da Restinga, no extremo-sul da cidade, para reinar à frente dos cerca de 200 ritmistas da agremiação, ensaiando os passos do Carnaval que se avizinha. A rotina é a mesma desde 2010, quando ela assumiu o posto de rainha de bateria da escola verde, vermelho e branco.
Por trás de todo esse brilho, há uma entrega gigante, que só quem ama o Carnaval consegue entender
CAREN RICARDO
Rainha de bateria da escola de samba Estado Maior da Restinga
Na madrugada deste domingo (16), ao pisar na passarela do Complexo Cultural do Porto Seco para desfilar mais uma vez junto à nação tinguerreira, defendendo o enredo dedicado ao padroeiro da escola, São Jorge, a soberana completará 15 anos de reinado.
Caren é a rainha de bateria mais longeva do Carnaval de Porto Alegre. Atualmente, entre as agremiações da Capital, ninguém ocupa o posto há mais tempo que a representante da Restinga.
Veterana na folia, ela defende que a posição seja encarada como uma missão, jamais um status.
— As pessoas veem o glamour, as fantasias, e pensam que ser rainha de bateria é somente sambar e fazer carão, mas vai além disso. Tem muito amor e muito respeito pela cultura do Carnaval envolvidos — afirma.
— Quando chega a época dos desfiles, todo mundo quer brilhar na avenida, mas quem quer virar a madrugada no barracão, ajudando a costurar as fantasias? Quem quer abrir mão dos finais de semana para acompanhar os compromissos da escola? Não é todo mundo que está disposto. Por trás de todo esse brilho, há uma entrega gigante, que só quem ama o Carnaval consegue entender — reflete.
Ao longo dos 15 anos à frente da bateria da Estado Maior da Restinga, Caren passou por diferentes momentos. Ajudou a escola do coração a ser campeã em três oportunidades (2011, com enredo sobre Nelson Mandela; 2012, cantando os vinhedos do Brasil; e 2023, em homenagem à mártir negra Anastácia), mas também viu a festa popular deixar de ser realizada por falta de patrocínio, em 2018, e voltar a acontecer somente pelo esforço coletivo das comunidades, sem investimentos públicos, em 2019.
A rainha observa que, em Porto Alegre, o Carnaval é sempre sinônimo de resistência. A pouca valorização despendida à manifestação cultural torna seu futuro incerto a cada ano e respinga, também, nos desafios enfrentados pelas rainhas de bateria.
— Se compararmos com o Rio de Janeiro, por exemplo, é outra realidade. Lá o Carnaval é muito mais valorizado, então as rainhas recebem todo tipo de apoio, fazem parcerias, têm toda uma estrutura em volta delas. Aqui, as rainhas e madrinhas de bateria são as mulheres comuns, que dão duro o ano inteiro para pagar a fantasia e representar as suas escolas da melhor forma. Conheço todas as gurias (das outras escolas) e posso dizer que todas são batalhadoras. O glamour fica somente na avenida. Fora dela, a gente está sempre correndo atrás — ressalta Caren.
Rainha, tia e mãe
Para a soberana da Estado Maior da Restinga, a batalha diária começa antes das 6h. É nesse horário, tão logo o sol raia, que Caren encontra tempo para exercitar o corpo, etapa indispensável a quem encara a maratona da avenida.
A rainha diz que a pressão estética é grande para as mulheres no Carnaval, mas confessa que não se preocupa tanto com a aparência. A preocupação maior é com a resistência que a folia exige.
A nova geração está vindo com tudo e não tenho vaidade em relação ao meu posto, só tenho amor pela escola.
CAREN RICARDO
Rainha de bateria da escola de samba Estado Maior da Restinga
Ela vai à academia na primeira hora da manhã. Depois do treino, volta para casa, prepara o café da manhã e arruma os sobrinhos Maria Luíza, 6 anos, e Kaique, 8, para a escola.
Caren vive com a mãe, Clarice, de 52 anos, com quem divide as responsabilidades pela criação dos pequenos. Eles são filhos do irmão mais novo dela, Cláudio, atleta de futsal que vive no Interior do Estado e vem pouco à Capital.
Tia pelo laço sanguíneo e mãe pelos laços do coração, a rainha se emociona ao falar da relação que mantém com as crianças.
— Tudo o que faço é por causa deles, sempre pensando em conseguir dar o melhor para eles. Os dois são como meus filhos, o que tenho de mais importante nessa vida — relata Caren.
— Nasci da barriga da minha mãe e do coração da minha tia — resume Ana Luíza com surpreendente lucidez, orgulhosa por ostentar o apelido de "mini Caren".
A pequena se espelha na tia-mãe também no mundo do Carnaval. Integrante do projeto social Mini Divas, dedicado à formação de passistas mirins, Ana Luíza desfilará em seis agremiações da folia porto-alegrense entre a noite desta sexta (14) e a madrugada de domingo (16). Entre elas está a Estado Maior da Restinga, escola de samba na qual a menina sonha em um dia ocupar o posto de rainha de bateria, assim como Caren.
— Também quero ser rainha da Mangueira — confidencia Ana Luíza, escondendo o rosto no abraço da tia-mãe.
Amor que vem de berço
O amor pela festa máxima da cultura popular corre pelas veias de todos os familiares de Caren, que desfilam em diferentes agremiações da cidade desde que ela se entende por gente. A primeira vez que a rainha pisou na avenida foi aos 10 anos de idade, trajando o azul, vermelho e branco da União da Vila do IAPI. Daquele dia em diante, nunca mais abandonou o Carnaval.
Caren lembra com carinho da infância marcada pelas caravanas que eram organizadas pela família para assistir aos desfiles, bem como das vezes em que passou pela avenida ao lado da mãe. Clarice é a fã número um da filha e fala dela com lágrimas nos olhos.
— Sempre passei para ela o meu amor pelo Carnaval. Quando a vejo brilhar junto da bateria, é como se eu também me realizasse — conta Clarice, que deu à luz Caren aos 15 anos.
Nos dias de desfile, a mãe se torna assistente pessoal da rainha de bateria. Com linha, agulha, cola e outros itens de emergência em mãos, Clarice fica a postos para atender qualquer imprevisto com a filha — como costurar uma parte da fantasia que se rasgue ou colar um adereço solto. O objetivo é garantir que a passagem pela passarela do Porto Seco seja perfeita.
Tão logo o grito de guerra da Estado Maior da Restinga ecoa, avisando que a escola adentrará a avenida, ela corre para a arquibancada e se junta ao restante da família. Os parentes costumam acompanhar os desfiles uniformizados, com camisetas estampadas com o rosto de Caren.
— Quando ela passa, eu grito, esperneio, mostro para todo mundo que é a minha filha que está ali. E choro sempre. Mesmo depois de tantos anos, ainda fico emocionada. O desfile é a consagração do esforço e da dedicação dos integrantes da escola, o ápice de um trabalho que dura o ano inteiro — explica Clarice.
Ralação fora da avenida
Caren afirma que a mãe é sua maior incentivadora. Foi graças ao apoio de Clarice que, ainda com 16 anos, a rainha conseguiu abrir seu primeiro salão de beleza. O espaço era pequeno, mas foi fundamental para que ela iniciasse sua trajetória empreendedora, que hoje já soma mais de duas décadas.
Assim como o amor pelo Carnaval, o ofício de trancista também veio de berço. Caren aprendeu vendo a mãe e as tias trançarem e tratarem as madeixas umas das outras. Com 13 anos, ela já atendia clientes a domicílio, exercendo a função que considera uma arte ancestral.
— Meu trabalho tem muito a ver com ancestralidade e identidade. A autoestima da mulher negra passa pela aceitação do cabelo, e eu entendo que sou um instrumento para empoderar a mulherada. É sobre amar o nosso black, amar o nosso crespo e ter orgulho de ser quem a gente é — afirma Caren.
A trancista passa a maior parte de seus dias no Poderosas Hair. Depois de levar as crianças ao colégio, pela manhã, ela parte para o salão e lá permanece até tarde da noite – a única exceção são os dias de ensaio, mas, às vezes, atende clientes também por lá. A demanda do espaço de beleza, que é mantido em parceria com o primo, Lucas Prestes, aumenta na semana que antecede os desfiles no Porto Seco.
Entendo que sou um instrumento para empoderar a mulherada. É sobre amar o nosso black, amar o nosso crespo e ter orgulho de ser quem a gente é.
CAREN RICARDO
Rainha de bateria da escola de samba Estado Maior da Restinga
O envolvimento com o Carnaval amplifica o trabalho de Caren, que é procurada por integrantes de diferentes agremiações. A rainha se vira nos 30 para conseguir atender à clientela carnavalesca, honrando a preferência de seu negócio, e ainda dar conta da própria preparação para o grande dia.
Comprometimento e amor pela folia
O ritual na semana pré-desfile engloba drenagens, alongamento de unhas e de cílios, bronzeamento, banho de lua e, claro, a mudança da extensão capilar. Das fantasias para o desfile e os eventos da escola até os tratamentos estéticos, tudo sai do bolso da rainha.
Caren prefere não comentar o quanto gasta com o Carnaval, mas reconhece que o valor é alto. E apesar das dificuldades, ela não pensa em economizar. A Restinga merece o melhor.
— Os sonhos da gente não têm preço. Todo ano, quando desfilo junto da minha bateria, da minha comunidade, estou realizando um sonho — destaca Caren. — Muita gente critica, acha que é bobagem gastar dinheiro com Carnaval, mas não ligo. Trabalho o ano todo sem parar, atendo clientes até de madrugada, para poder dar o melhor para a minha escola.
Caren não consegue evitar as lágrimas ao falar do que sente pela Estado Maior da Restinga. Ela ingressou na escola em 2009, quando representou a agremiação no concurso que anualmente elege a Corte do Carnaval de Porto Alegre. Não venceu a disputa municipal, mas ganhou o posto de rainha de bateria da verde, vermelho e branco e um amor que, ela garante, vai durar a vida inteira.
— Quando entrei na quadra e ouvi a bateria da Restinga pela primeira vez, fiquei completamente arrepiada. Eu frequentava várias escolas de samba desde criança, mas nunca havia sentido o que senti com a Restinga. Foi algo que não tem explicação, um amor que me preencheu por inteiro — lembra.
Caren diz que a Estado Maior da Restinga é como uma família. Ela anda pela quadra da escola de samba como quem anda pela própria casa, porque é assim que se sente no templo sagrado da nação tinguerreira. Após 15 anos à frente da bateria, a rainha entende que está chegando a hora de se despedir do trono:
— Sei que não vou ficar na posição de rainha para sempre, mas isso é muito tranquilo para mim. A nova geração está vindo com tudo e não tenho vaidade em relação ao meu posto, só tenho amor pela escola. O que eu quero é continuar contribuindo com a comunidade até o fim da vida, independentemente de onde for.
Para selar o début na avenida, Caren quer ver sua escola do coração ser consagrada como a campeã do Carnaval 2025. Já o que ela sonha para esta e para as folias que ainda virão é mais respeito e valorização.
— Quem faz parte do meio carnavalesco sabe que a nossa luta contra o preconceito é constante, porque o Carnaval é muito discriminado e muito criminalizado aqui no Rio Grande do Sul. É triste, porque estamos falando de uma cultura linda. Mas acredito que, um dia, o nosso Carnaval será valorizado como merece.