
Na contramão de rotinas cada vez mais frenéticas, a escritora estadunidense Julia Cameron propõe um respiro nos dias corridos: logo ao acordar, escrever três páginas à mão todos os dias sobre qualquer coisa que esteja passando pela sua cabeça.
Essa é a proposta do “morning pages” (páginas matinais, em tradução livre), uma técnica apresentada no livro O Caminho do Artista (editora Sextante). Apesar de ter sido criada há mais de 30 anos, a prática voltou à tona nas redes sociais nos últimos meses, com vídeos de usuários que compartilham suas experiências com o exercício diário de escrita.
Na obra, a autora propõe um programa de 12 semanas, com exercícios feitos uma única vez enquanto outros são realizados diariamente ou semanalmente. Mas, em alguns casos, as páginas matinais podem ir além. Foi o que aconteceu com Maria Beltrão, que aderiu à prática durante a pandemia de covid-19.
Em entrevista para Donna, a jornalista contou que, o que era para ser apenas uma busca por inspiração, acabou se transformando em O Amor Não Se Isola (editora Máquina de Livros), livro publicado em 2020.
— Não sabia que estava escrevendo um livro. Fazia o exercício todo o dia. É uma coisa muito intimista, algo que jamais pensei que ia me permitir fazer, porque como jornalista, adoro editar, reescrever, refazer, organizar — conta.

Um dos pontos destacados por Julia Cameron é justamente o de não existir uma maneira errada de fazer as páginas matinais, e que "as divagações diárias não precisam ser consideradas arte".
Se eu achasse que estava escrevendo um livro, talvez teria mais censura.
MARIA BELTRÃO
Jornalista e apresentadora
Maria, que esteve à frente da transmissão do Oscar na TV Globo no início do mês, relembra que descobriu muito sobre si durante o processo de escrita, porque deixava as suas emoções "rolarem sem filtro e sem pensar no papel".
— Eu acho que essa técnica é o contrário da organização de ideias e emoções. Ela é justamente a desorganização, a completa anarquia, e isso é muito bom — afirma.
Em O Amor não se Isola, a jornalista tenta driblar a reclusão da pandemia através de reflexões sobre a vida, no geral, expondo confidências da Maria que se divide entre outros papéis: mãe, esposa, filha, fã e amiga:
— Esse fluxo de consciência te permite descobrir o que está lá no fundo de você. Se achasse que estava escrevendo um livro, talvez teria mais censura.
Escrita terapêutica
Apesar de ser pensada especialmente para destravar a criatividade, a prática das páginas matinais também funciona como um recurso terapêutico. Para a psicóloga Martha Santiago, a escrita também é um ato benéfico para a saúde mental:
— Querendo ou não, a gente se esvazia um pouco de tudo o que nos atravessa. A escrita terapêutica vem justamente desse lugar de uma tentativa de não repressão, do não perfeccionismo, da fluidez, de entrar em contato com o que se pensa e de se perceber.
Outra pessoa também impactada pela técnica foi a autora Elizabeth Gilbert, que após um divórcio e um quadro de depressão, aderiu às páginas matinais. Inspirada pelo exercício, a estadunidense escreveu o best-seller autobiográfico Comer, Rezar, Amar.
— Um amigo me deu O Caminho do Artista e segui ao pé da letra — revelou ela em entrevista ao canal How To Academy, em 2020 — Comer, Rezar, Amar não teria nascido sem esse livro — completou.
Foi graças a esta prática que Elizabeth descobriu, por exemplo, que queria aprender um novo idioma.
Quando a gente se conhece, algumas coisas viram apenas detalhes.
MARTHA SANTIAGO
Psicóloga
De acordo com Martha, é muito comum que este hábito ofereça um senso de autoconhecimento, pertencimento e atenção plena com o corpo e a mente de quem pratica:
— É através do autoconhecimento que temos consciência do que a gente faz e do ciclo que nos mantemos. É um trunfo muito grande. Quando a gente se conhece, algumas coisas viram apenas detalhes.
Produção: Rayne Sá