
Patrícia Lima, Especial
Ajudar as jovens mulheres a manejar conceitos complexos em favor de novas e inéditas conquistas. Esse foi o objetivo da escritora e professora Heloisa Buarque de Hollanda com o lançamento dos livros Pensamento Feminista: Conceitos Fundamentais e Pensamento Feminista Brasileiro: Formação e Contexto, editados pela Bazar do Tempo e lançados recentemente em Porto Alegre, durante a FestiPoa Literária. Nas duas reuniões de ensaios, Heloisa estrutura as ideias e os conceitos de pensadoras como Judith Butler e Nancy Fraser, relacionando-as com a evolução do debate feminista brasileiro, com nomes como Heleieth Saffioti e Cynthia Sarti. Mestre e doutora em Literatura Brasileira e com pós-doutorado em Sociologia, Heloisa tem uma formação acadêmica sólida que, segundo ela, pode ajudar as mulheres a compreenderem o movimento e, principalmente, a darem o passo seguinte, na direção de uma transformação social efetiva e contundente. Autora de mais de 10 livros, ela recebeu Donna em uma tarde chuvosa de Porto Alegre, quando esteve na cidade para lançar suas novas publicações. Confira a seguir os principais trechos dessa entrevista.
A senhora comenta que os textos que compõem os livros são frutos de escolhas pessoais, são quase um compartilhamento de leituras. Como despertou para essas leituras e para o feminismo?
O impulso que me fez produzir esses livros foi um outro livro, que acabei de fazer, chamado Explosão Feminista, que é sobre a quarta onda. São as meninas. Elas são de um proativismo espantoso. E conseguiram uma proeza, com a ajuda da internet, que é serem ouvidas. Do século 19 até agora, elas foram finalmente ouvidas pela primeira vez. Fiquei apaixonada por essas meninas e quis dar repertório para elas ficarem ainda mais violentas (risos). Elas são muito jovens e eu quis compartilhar minha formação. Na mão delas, esse conhecimento vai longe. Então, comecei fazendo um curso que eu daria, que é o Conceitos Fundamentais.
As pessoas usam os conceitos de forma errada porque não conhecem. Mas eu sei que, se conhecerem, é nitroglicerina. Então, parti dos anos 1970, que foi quando a ideia de gênero foi formada.
Com base na evolução desses conceitos, dá para definir o que é gênero? Gênero é poder?
Gênero é poder. É uma relação, é um posicionamento construído pela sociedade para a mulher. Um posicionamento, aliás, muito desfavorável. Então, não adianta mudar o polo. Você tem que mexer nessa relação para realmente discutir a situação das mulheres. Hoje, com essas meninas sendo ouvidas, essas relações de poder estão sendo mexidas pela primeira vez. Os meninos estão tendo que ouvir e aprender no tranco. Vem daí algumas coisas que estamos começando a ver, como os homens querendo discutir as masculinidades. A mulher já sabe o que ela é. Os homens ainda não têm nem noção.
Um dos debates presentes na reunião de textos dos livros é o lugar de fala das mulheres que habitam o debate feminista, como a mulher negra, a mulher gay, a mulher pobre. A ilusão do feminismo universal é mesmo apenas uma ilusão?
Em 1981, essas questões já estavam sendo levantadas pelas pensadoras feministas. Isso não é novo. Agora, com o nome de lugar de fala, essas reflexões estão recém chegando ao debate. Audre Lorde falava em “sister outside”, ou seja, é uma irmã, mas está fora da irmandade por sua condição diferente das demais mulheres feministas. Acho lindo que essa interpelação esteja ocorrendo junto com o debate de gênero, porque até hoje o feminismo seguia sendo branco. O horror que alguns setores da classe média têm da Marielle (Franco), por exemplo, demonstra que isso existe. Então, o feminismo só era universal no meu corpo, mulher branca, em situação de privilégio, frequentando a universidade. Sou feminista desde 1980 e nunca encaminhei uma demanda sobre mulheres negras.
O acirramento desse debate não afasta as mulheres do feminismo?
É muito desagradável esse embate, esse momento em que não podemos nos mexer que já estamos falando errado. Sempre falta um negro na mesa, uma lésbica, uma trans. É um sufoco. Mas é necessário. Vivemos uma emergência. O livro mostra: todas disseram que não existe hierarquia de opressão, ou seja, não dá para falar primeiro da mulher e depois do lesbianismo, ou depois do racismo. Mas ninguém ouviu. Ou fala de tudo, ou não está falando de nada.
Não existe hierarquia de opressão, ou seja, não dá para falar primeiro da mulher e depois do lesbianismo, ou depois do racismo.
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA
Então, como vamos seguir a luta feminista se tantos fatores nos separam no debate?
Se vamos falar de mulher, então que digamos primeiro que voz é a nossa, quem é a mulher que está falando. A mulher branca hétero tem que sacar que ela é especial e tem que se comportar a partir desse lugar, e não como se fosse todas as mulheres. Com essa noção do nosso lugar, podemos, sim, ser livres para falar a favor das lutas feministas. Gramsci dizia que toda guerra tem dois momentos: um é a luta de posição e outro é a luta de manobra. Vivemos claramente o momento da batalha de posição. E esse confronto interno, de vozes, não enfraquece o movimento, pelo contrário. Estamos em momento de divisão interna, mas isso vai se resolver. Para ter diálogo, precisa ter duas vozes. Até agora só tivemos uma. Hoje, por exemplo, nós cedemos a palavra ao negro. Organizamos uma mesa de debates e saímos catando um negro para representar. Ainda não há voz suficiente para que eles estejam representados naturalmente. Precisamos de duas vozes para o diálogo verdadeiro. E, neste momento, a outra voz está começando a se firmar.
As mulheres realmente têm demandas diferentes?
Claro que sim. Uma das coisas lindas que estão acontecendo é a tomada de palavra das mulheres indígenas, por exemplo. Elas têm demandas muito específicas, a mulher indígena briga pela terra, pela posição na tribo. Essas brigas não fazem sentido para nós, não têm equivalência. A mulher negra também tem as suas demandas. Eu não sou negra, não sei o que é ser xingada pela minha cor, não sei o que é ser excluída. Nunca vivi esse absurdo para falar em nome dessas pessoas. Por isso, temos que entender que as vozes são diferentes, que nascem a partir de demandas e anseios diferentes. Nós, brancas, devemos procurar os caminhos para a luta feminista. Mas não podemos assumir o protagonismo nas lutas que não são nossas.

Pensadoras como Judith Butler, que está presente no livro Conceitos Fundamentais, ainda causam muita tensão e polêmica. Por quê?
Bom, em primeiro lugar é preciso dizer que ela foi mal traduzida. Quando fala em “problema de gênero”, na verdade ela diz trouble, que é encrenca. Ela problematiza o que é ser homem e mulher. A Butler não tem muita originalidade no que diz. Seu grande mérito é sistematizar tudo o que já havia sido dito pelas pensadoras anteriores e, a partir disso, formulou o conceito de gênero como performance e não como algo intrínseco e natural da mulher. Simone de Beauvoir já havia dito isso. Agora, você imagina dizer isso para a família brasileira!
O conservador não suporta isso. Já ouvi muita gente chamá-la de destruidora de famílias. No fundo, está certo. Sem heterossexualidade como norma e sem a segurança nos papéis dos gêneros, o capital, a reprodução e a transmissão de patrimônio são postos, literalmente, em xeque. O casamento com sexos diferentes é muito importante para a manutenção da sociedade capitalista. Os conservadores têm toda a razão em gritar.
Você comenta que foi difícil fazer o livro Pensamento Feminista Brasileiro, principalmente devido à escassez de pensadoras brasileiras. Por que isso ocorreu?
Precisamos entender, em primeiro lugar, por que a evolução do pensamento feminista no Brasil não pôde ser contemporânea com o resto do mundo. Aqui, três fatores calaram as mulheres por muito tempo: a ditadura militar; a esquerda, que considerava todas as outras demandas menores do que a luta contra o regime autoritário; e a igreja, que era a grande aliada da esquerda na oposição ao governo militar e que precisaria ser confrontada em um levante feminista. As poucas mulheres que conseguiram produzir coisas novas e interessantes naquele ambiente totalmente hostil foram geniais. Não sei como elas conseguiram.
A Heleieth (Saffioti), que é a nossa Simone de Beauvoir e que fundou a conceituação feminista a partir do Brasil, no final de sua tese afirma que não é feminista. Afirma ter escrito uma tese sociológica sobre a condição da mulher, mas se resguarda dizendo que não é feminista. Para você ver como a coisa era complexa.

Quais as principais conquistas que o feminismo brasileiro obteve a partir da abertura dessa discussão?
É interessante ver que nosso debate feminista não começou, como nos outros lugares, discutindo gênero ou questionando hierarquia na opressão. Não começamos pelos direitos sexuais. Começamos pelo básico, pelos direitos fundamentais, que não tínhamos. As mulheres estavam sendo mortas pela violência, pela censura, pela falta de saúde. A luta aqui foi bem mais concreta, em busca de liberdade de andar por onde quiser, de pensar sobre sua condição. E as conquistas foram muito mais contundentes. Essas ativistas fizeram delegacias da mulher espalhadas pelo Brasil, chegaram a montar um ministério específico para as questões das mulheres, colocaram na Constituição essas conquistas. Isso é de uma estratégia política e de uma força impressionantes.
Hoje vemos o crescimento de movimentos conservadores antifeministas liderados por mulheres. Para o que aponta essa tendência?
Isso sempre teve. Em 1964, foram mulheres que organizaram a marcha “por Deus e pela família”. Mas, ao contrário do que a gente imagina, esse não é um problema de costumes, mas sim de capital. Mesmo sem saber, as pessoas não estão defendendo costumes, mas a propriedade.