Se não fosse ela, eu não estaria aqui. Quer dizer, talvez estivesse, mas tudo teria sido diferente. Ela foi o meu caminho para o feminismo.
Em 2008, eu estava em Cuiabá entediadíssima e fui procurar um sebo pra tentar achar alguma alegria na vida. E foi lá que encontrei um livro chamado Sangue sem Dono. Era só isso que dizia na lombada: Sangue sem Dono. Na época, eu não me toquei que colocar o nome de uma mulher na lombada poderia comprometer o interesse, na época eu não me tocava dessas coisas, mas foi amor à primeira página. Descrevi como “soco na boca, fogo nas entranhas, fenômeno sem nome na lombada por R$ 6 em um sebo sem pechinchas”.
Que livro. Um dos melhores que li nessa vida. Fiquei vidrada. Eu nunca tinha me apaixonado assim por uma escritora.
“Sob o chuveiro me lembro da visita de Mauro-Aretino. Meus ovários emitem um gemido compassado; presto atenção, traduzo a mensagem: não quero, não quero. Numa mulher, a primeira etapa da sabedoria consiste em ler corretamente as mensagens de sua inteligência; a segunda, em interpretar as de seus ovários; até aí, pelo menos, já cheguei. A terceira é quando se logra captar a voz do coração do mundo. Um hino terrível, agônico, violento, fraterno, solidário, desesperado, triunfal, desorbitado e jubiloso. Quem o escutar terá atingido a etapa final, que é o desencadear da Divina Loucura; então poderão arrebatar o fogo do céu.”
Fui atrás de outros livros dela. Descobri que Carmen escrevia na revista Cláudia e foi a principal responsável por introduzir o feminismo na imprensa brasileira nos anos 1960. Ela incentivava as leitoras, dentro daquele espaço limitado que era uma revista feminina, a buscar o protagonismo de suas próprias vidas – em vez de serem coadjuvantes da vida de seus homens.
Escrevi, em 2010, um texto sobre ela na Revista Brasileiros e já me desculpo por ter falado umas merdas do tipo “fez tananam sem queimar sutiãs” e “mulherzinhas”, pois ainda não estava com meu discurso formado, estava chegando, estava aprendendo.
Durante 22 anos, esteve à frente da coluna A Arte de ser Mulher – título que abominava – na revista Claudia. Exerceu a função com primor. Foi a primeira mulher a assinar coluna, respondendo às cartas de leitoras deste país. Antes disso, “Dona Antonia”, ou qualquer outro pseudônimo inventado pelos senhores da redação, tomava a função de orientar as leitoras. Pobres leitoras, penso eu. Imagine-se em um impasse conjugal em que apenas uma revista pudesse lhe aconselhar e você tivesse de engolir recomendações do tipo: “…Deixe de puerilidades, menina”.
Claudia era tida como cartilha da mulher moderna casada e que assim pretendia se manter, até que a morte os separasse. Era assim, até surgir Carmen da Silva. Uma gaúcha que fugiu de um Brasil machista, trabalhou no Uruguai e na Argentina, foi premiadíssima com seu primeiro romance e voltou ao país, formada em Psicologia, calejada e sábia.
Vou aproveitar esse espaço pra conclamar as editoras, todas as editoras, alguma editora, a republicar essa mulher maravilhosa que nunca deveria ter sido esquecida. O que mais me dói nisso tudo é que as coisas que ela escreveu há 50 anos seguem muito parecidas. Achamos que demos grandes passos, mas, quando vamos ver, está tudo muito bem parecidinho a 1963. É desesperador. E é por isso que o texto dela não datou. Por isso e porque ela era fantástica e por isso sua memória precisa ser mantida viva, não só como ativista, mas como a grande romancista que foi.
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