A discussão começou assim. Ou, pelo menos, foi a partir daí que todos os vizinhos passaram a acompanhar a briga do casal, porque eles gritavam um com o outro. Gritavam muito. Tipo berro mesmo.
- Não. Foi a última vez que você chegou esta hora em casa com a desculpa de que estava trabalhando até mais tarde.
- Mas é verdade. Liga para os outros, se não acredita em mim.
- Ah tá, até parece que vai adiantar. Vocês estão sempre acobertando as escapadas uns dos outros. Um bando de canalhas. Tudo que é homem é igual.
Nesse momento, um copo se quebra lá no apartamento deles. Talvez fosse um vaso, ou uma garrafa, sei lá. O barulho é de vidro quebrado. Pronto, vai começar a pancadaria, pensei, e já comecei a procurar com os olhos o telefone para chamar a polícia, se fosse o caso.
Não me meto em briga de casal - nem de ninguém -, mas também não posso deixar o cara matar a mulher. Ou vice-versa, sabe-se lá. A moça estava tão furiosa que poderia esganar o homem, embora ele tivesse quase um metro e noventa e ela pouco mais de um metro e meio. Na hora da raiva qualquer um se agiganta e fica perigoso.
Olho para o relógio. Três da manhã. Isso é hora de vizinho brigar? Claro que tomo o partido da mulher. Quem vai trabalhar até as três horas da madrugada? Tá bom, tá bom. Vigia noturno trabalha. Médico também. Motorista de ônibus. Alguns jornalistas. Enfermeiros. Taxistas. Ok, muita gente vara a noite na labuta. Talvez o homem não estivesse mentindo, afinal. Mas continuo do lado da mulher, por motivos óbvios.
A gritaria cessa. Será que acabou a briga? Fizeram as pazes, eu acho. Ou, então, alguém foi assassinado com um pedaço de vidro e o outro está pensando na melhor forma de se livrar do corpo. Acho que estou vendo filme policial demais.
Ouço a voz deles de novo. Alívio! Só que agora num tom mais baixo. Epa! Isso foi uma risada? Como assim, não estavam quase se separando? Hummm, a voz dela está mudando de tom. A dele também... Ouço sussurros no apartamento de cima, e um som diferente. Parece uma cama rangendo. Final feliz para o casal que, pelo que me contaram, está junto até hoje. E eu perdi o sono naquela madrugada. Levantei e fui escrever. Ainda bem que o dia seguinte era um sábado.
A moça furiosa, de pouco mais de um metro e meio, poderia esganar o homem de quase um metro e noventa
Viviane Bevilacqua
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