Precisava encontrar um lugar para estacionar o carro, mas naquele dia o Centro da cidade estava especialmente cheio. Chuva, véspera de fim de semana, feriado no Estado vizinho, tudo conspirava para que Floripa ficasse quase intransitável. Tentei algumas garagens pagas, todas lotadas. No shopping, fila de perder a paciência. Eu rodava, rodava e nada, mas tinha que esperar mais 30 minutos pela caroneira, com quem havia combinado o encontro. Parei, então, em frente a uma garagem de um prédio, deixei o pisca- alerta ligado e fiquei sentada no meu banco, ouvindo música. Se algum morador quisesse entrar ou sair, era só eu mover um pouco o carro.
Dei um suspiro profundo e aliviado. Dirigir em Floripa não é fácil. Na sexta- feira e com chuva, então, é coisa pra macho (ops!), pra corajosos. Abri o porta-luvas buscando algum CD. Encontrei um do Chico Buarque, cuja capa tem uma dedicatória do meu irmão, escrita há 12 anos, num aniversário. Há quanto tempo não o ouvia! A cada nova música, eu pensava: essa é uma obra-prima. A minha preferida. Não, é essa aqui. Que letra! Puxa, essa é melhor ainda! Eu estava extasiada, pensando em como alguém pode escrever tão bem sobre tantos assuntos. O Chico tem uma facilidade incrível para falar sobre tudo e, especialmente, para desnudar a alma feminina... E aqueles olhos azuis, então? Já fizeram tantas mulheres suspirarem...
"Ah, se já perdemos a noção da hora/ Se juntos já jogamos tudo fora/ Me conta agora como hei de partir...". Eu cantava junto com o Chico e nem lembrava mais do trânsito e do stress da sexta-feira. O carro, embaçado, transformara- se numa espécie de redoma, onde eu estava protegida da chuva, do vento e de qualquer problema externo. Ao limpar o vidro, observei que havia estacionado bem próximo a uma academia de dança. Lá dentro, um casal ensaiava passos de tango, numa simbiose perfeita. Eles repetiam várias vezes o mesmo movimento, até o acharem perfeito. Aquele casal estava como eu: completamente alheio à chuva forte da rua, concentrado apenas naqueles instantes de puro deleite.
Mas como tudo o que é bom dura pouco, chegou minha hora de voltar à realidade. Abaixei o som, dei mais uma olhada para o casal que continuava dançando, liguei o carro e parti. Na esquina, quase sou testemunha de um acidente. Uma moto furou o sinal e escapou por muito pouco de ser colhida por um ônibus. Pronto. Acabou o encantamento. A vida segue em frente. Outro dia marco um novo encontro com o Chico.
O Chico tem uma facilidade incrível para falar sobre tudo e para desnudar a alma feminina
Viviane Bevilacqua
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