
Bem antes da família real britânica, outras realezas europeias foram pioneiras em adotar comportamentos progressistas. Segundo o historiador Francisco Vieira, especialista em família real, ao contrário do que se pensa, os britânicos estão chegando depois em iniciativas como a de Harry e a esposa, Meghaan Markle, de se afastarem dos eventos oficiais – embora seja uma decisão sem precedentes.
Leia trechos da entrevista:
O que representa, do ponto de vista histórico, a decisão de Harry e Meghan?
É uma decisão muito nova. As pessoas tentam fazer algum paralelo com o rei Edward VIII (tio da rainha Elizabeth II que abdicou do trono para se casar com uma americana divorciada), a princesa Margaret (irmã mais nova da rainha Elizabeth que se casou com um fotógrafo), mas isso não aconteceu antes. Na prática, os príncipes e a família real representam o reino, é uma antiga concepção histórica de que o rei é a cabeça de um corpo social, ele encarna o país. Em alguns casos o sobrenome das famílias reais é o nome do país. Por princípio, ele (rei) não tem nada a ver com o mundo do trabalho e o mundo do dinheiro. A família real não pode, não deve estar na concorrência, porque seria desleal. Tanto é que as famílias reais, quando entram em processo contra a imprensa, por difamação, o dinheiro que recebem é encaminhado para alguma obra de caridade, como se não fossem sujar a mão com o dinheiro. É uma antiga concepção medieval.
O Reino Unido está passando pelo Brexit, que, do ponto de vista político, é muito importante. A saída de Harry e Meghan, do ponto de vista simbólico, também tem reflexos. Afinal, são duas crises ao mesmo tempo?
Ceticamente, não é à toa que isso veio agora à tona. É um antigo esquema da família real, que muitos governos, inclusive, aprenderam com eles: quando você tem um problema maior, é melhor jogar o foco em outra coisa. Mesmo que digam que a rainha foi pega de surpresa, não é à toa que essa questão do Harry e da Meghan é superconveniente no momento do Brexit. Não se fala do Brexit, se fala do Harry e da Meghan. Harry e Meghan saem do primeiro escalão da família real, isso chama a atenção da mídia, e as pessoas estão falando disso há um tempão, quando o Brexit, politicamente, socialmente e economicamente, tem um peso muito maior.
O Brexit deve ocorrer no final do mês.
Exatamente, e a imprensa está preocupada se Harry vai trabalhar ou não. Claro que a família real, além de ter esse papel, mexe com o imaginário. É uma minissérie que a gente acompanha desde a década de 20 do século passado, desde que a imprensa toma conta disso.
Na prática, eles (Harry e Meghan) não deixam de fazer parte da família real. Ele não abdicou de qualquer possibilidade de um dia, remotamente, ser rei do Reino Unido. Mas eles querem uma independência financeira. Isso significa que o contribuinte deixa de sustentá-los, e eles passam para a iniciativa privada, para o mundo liberal, dos negócios.
Agora ele vai para o Canadá, mas o Canadá também não quer arcar com essas despesas. Mesmo que eles vivam uma vida profissional livre, tem a questão da segurança. O Canadá é membro da Comunidade Britânica, a Elizabeth II é rainha do Canadá também. Isso implica despesas.
Harry é um sujeito que se casou com uma afrodescendente. Isso era muito interessante para a rainha, para o reino, porque rende dividendos de popularidade, modernidade. Coroa uma família que foi responsável pelo colonialismo, pela escravidão. É meio como uma absolvição.
O casal vai continuar tendo uma mansão montada dentro das propriedades da família real que vai ser mantida o ano inteiro. A segurança deles vai depender da família real. Não podem passar para uma vida privada. É pura ilusão. É uma maneira, talvez, de ganhar mais dinheiro, de administrar uma fortuna que ele herda da mãe. A fortuna que a princesa Diana deixou foi administrada pelo ex-primeiro-ministro John Major, a pedido dela. Quando os irmãos alcançaram a maioridade e tomaram posse desses bens. São bens privados, não são da família real. Eles têm uma fortuna pessoal já, como Meghan deve ter seus bens, de quem toda vida trabalhou. Isso não foi uma coisa pensada de uma hora para outra. Isso certamente, no namoro, no noivado, no casamento já deveria ser assunto.
Harry tem vários inconvenientes. É um príncipe que tem mais carisma que o herdeiro, um sujeito que se casou com uma afrodescendente. Isso era muito interessante para a rainha, para o reino, porque rende dividendos de popularidade, modernidade. Coroa uma família que foi responsável pelo colonialismo, pela escravidão. É meio como uma absolvição. E é muito conveniente que ele ceda o passo, que inclusive é o termo que usam, como se desse um passo atrás para que os herdeiros do trono ganhem a primeira linha. Porque eles realmente ofuscam. Ele é um príncipe extremamente moderno, carismático, simpático e vai sofrer esse problema de ser um segundo filho que vai ofuscar o herdeiro do trono, que é William, que será rei um dia.
Essa atitude de flexibilização se observa também em outras famílias reais?
Sim, o problema da família real inglesa é que ela é muito extensa. A rainha tem primos em primeiro grau que ainda vivem na lista civil que o contribuinte sustenta. O Palácio de Kensington é um grande cortiço, cada um tem um apartamentinho lá dentro. É claro que exercem funções para a Coroa britânica, mas é muita gente.
Os reis da Suécia, da Holanda, foram muito mais progressistas. Um exemplo é a sucessão absoluta na linha feminina. A herdeira do trono da Suécia é uma mulher, a princesa Victoria. Ela teve um irmão, mas o parlamento decidiu que o primeiro que nascia, levava. E depois as outras famílias reais copiaram a lei. Hoje, você tem várias meninas que são herdeiras do trono da Noruega, da Bélgica. Também depende dessas fortunas pessoais. A rainha e rei da Holanda são riquíssimos. São reis da Holanda por uma concessão. Não precisam sair dali para trabalhar porque já têm dinheiro demais. Assim como os príncipes de Liechtenstein, onde um príncipe casou-se com uma americana também afrodescendente muito antes de Harry e Meghan.
A Inglaterra não é pioneira nisso. Ao contrário, foi a que mais demorou. Tem uma importância grande porque a Inglaterra tem um peso maior, mas foi mais cautelosa nessas mudanças, que foram acontecendo ao longo do século 20 porque, se não se adapta, cai. O súdito que sustenta essa Coroa quer se ver retratado nessa família real, que é a cabeça de um corpo social. Não adianta ela ser anacrônica.