A cantora Daniela Mercury, 53 anos, sobe nos trios elétricos deste Carnaval entoando sua nova marchinha contra a censura e a favor de que todos saiam do armário. Para a cantora, a alegria em torno da festa popular é revolucionária e ajuda a tirar a "tensão no ar" trazida pela intolerância.
— Eu falo de todos os armários. A gente usa muito esse termo para o público LGBT+, mas serve para qualquer pessoa que precise se libertar de um cárcere emocional — afirma a cantora e autora do recém-lançado Proibido o Carnaval ao lado de Caetano Veloso.
Para ela, o país passa por um momento de muitas restrições, das quais o Carnaval pode ajudar a se libertar.
— A gente precisa muito de um Carnaval sem policiamento ideológico ou de comportamento. São tantas prisões em que tentam nos colocar na vida. Não há nada como a arte para tirar a importância das paredes. Quando chega o Carnaval, a música une as pessoas que pensavam estar separadas.
Uma dessas prisões, segundo Daniela, está na recente declaração da ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) de que "menina veste rosa e menino veste azul". A frase é alvo de crítica na letra de sua música com Caetano Veloso.
— A afirmação da ministra é perigosa e reforça o preconceito contra crianças e adultos que não se encaixam nesse padrão social de feminino e masculino. É justamente a imposição desse padrão que tem gerado imenso sofrimento e violência a quem não se enquadra nele, como, por exemplo, a população de transexuais e transgêneros.
Além do bloco Crocodilo no domingo (3) e na segunda (4) de Carnaval em Salvador (BA), Daniela trará pelo quarto ano seu Pipoca da Rainha para o pós-carnaval de São Paulo. O trio desfila no domingo (10), com concentração a partir das 15h na rua da Consolação, no centro da cidade.
— Quando vi que as pessoas estavam tomando as ruas de São Paulo, pensei "vamos florir a avenida". Isso aproxima as pessoas, quebra as barreiras, as distinções de classe. Elas vão olhando uma para as outras e percebendo que não estão sozinhas — afirma a cantora.
Qual será o tema de seus blocos neste ano?
Será uma homenagem à Tropicália, às DZI Croquettes (grupo de teatro carioca dos anos 1970 formado por travestis) e aos Filhos de Gandhy, bloco que comemora 70 anos de afoxé e que inicia todo esse movimento de afirmação da comunidade negra.
De onde veio a inspiração para Proibido o Carnaval?
Há cinco anos, quando comecei a perceber esse clima de críticas à arte e a falta de compreensão das expressões artísticas no país. Escrevi um texto bem grande para falar do valor da arte, sobre a proibição do Carnaval. Daí peguei só o refrão e construí essa melodia. A ideia é colocar a proibição para falar de liberdade. (...) Parece que desamarrei todo mundo. Uma sensação espetacular. As pessoas estavam precisando dela e eu nem sabia. Quando canto "abra a porta desse armário", falo de todos os armários. Usamos muito esse termo para o público LGBT+, mas serve a qualquer pessoa que precise se libertar de um cárcere emocional. Quando está todo mundo muito tenso e intolerante, a música surge como um grande convite à felicidade. (...) Que bom que o Carnaval está aí para quebrar tanta intolerância, a gente precisava de alguns carnavais para tirar esse estresse absurdo, para olhar para si e dar risada.
Como foi a parceria com Caetano?
O repertório dele se embaraça com o meu. O axé é a encarnação do som tropicalista dentro da democracia. Toda essa construção da música afirmativa, da afro-baiana, os discursos politizados dentro das canções. Ele me ensinou a importância da liberdade de expressão, da democracia e como fazer da minha arte um instrumento libertário. Uma das coisas mais lindas que Caetano disse é que nós brasileiros olhamos para nós mesmos com muita dureza às vezes. Nós somos melhores do que imaginamos.
Você tem esse olhar para si?
Sempre fui uma artista muito séria, muito densa, cantava as músicas de MPB mais tristes, de Chico Buarque, de Elis Regina, de Caetano. Virei rainha do axé porque preciso dessa alegria. A alegria é revolucionária. A gente precisa muito de um Carnaval sem policiamento ideológico ou de comportamento. São tantas prisões em que tentam colocar a gente na vida. Estamos num momento de muitas limitações, não só agora, mas nos últimos quatro, cinco ou seis anos. Não há nada como a arte para tirar a importância das paredes, porque no fundo, nós somos muito parecidos nas sensações, nos medos e nos sonhos. Quando chega o Carnaval, a música une as pessoas que pensavam estar separadas.
Em Proibido o Carnaval, você critica a frase da ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) de que "menino veste azul e menina veste rosa". Qual o impacto dessa declaração?
A mim, parece uma tentativa de aprisionar pessoas em padrões, em caixinhas, e por isso desrespeita o direito de cada um de vestir e ser o que quiser. A afirmação da ministra é perigosa e reforça o preconceito contra crianças e adultos que não se encaixam nesse padrão social de feminino e masculino. É justamente a imposição desse padrão que tem gerado imenso sofrimento e violência a quem não se enquadra nele, como transexuais e transgêneros. Quando canto "vai de rosa ou vai de azul?" é para libertar todo mundo do padrão e lembrar que vivemos em uma sociedade diversa, moderna, democrática e plural e que cada pessoa tem o direito de ser o que quiser e vestir a cor e a roupa que quiser.
Você dedica o clipe da música ao ex-deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ).
Fiquei constrangida como brasileira, cidadã, e amiga por ele ter tido que deixar o país por ameaças de morte. É frustrante que não possamos proteger a vida de um deputado. Quis dedicar a ele porque é uma obra que fala de liberdade, que traz a questão LGBT+. Espero profundamente que ele volte.
As lutas das minorias não podem ser enfrentadas sozinhas. As lutas importantes por direitos humanos são de todos"
DANIELA MERCURY
Com a saída dele, a representatividade do público LGBT+ no Congresso fica comprometida?
Contamos com a inteligência de David Miranda (PSOL), seu suplente, e estamos felizes com a eleição do primeiro senador declaradamente homossexual, o Fabiano Contarato Rede-ES). O novo Congresso é mais jovem e mais conservador, mas com certeza teremos bancadas progressistas, e congressistas que respeitam a diversidade e que devem lutar pelos direitos das minorias como está na Constituição. Nossa comunidade está muito atenta e, como sociedade civil, vai trabalhar muito para evitar retrocessos.
É um momento mais desafiador para os LGBT+ no país?
É um momento de dar resposta com arte, alegria e força nas ruas. Todos os blocos do Recife, de São Paulo e do Rio vão fazer isso. Ainda mais com essa meninada tão politizada, a gente vai ter várias expressões bastante claras do que o povo brasileiro está sentindo. Tento ser abrangente na minha música, dar força a todos. As lutas das minorias não podem ser enfrentadas sozinhas. As lutas importantes por direitos humanos são de todos.
A criminalização da homofobia está em pauta no Supremo Tribunal Federal. O que você espera?
Os números de assassinatos de homossexuais, lésbicas e transexuais no Brasil são alarmantes. E o problema é a homofobia. Acredito em um resultado positivo para a nossa comunidade. A certeza da impunidade aumenta o número de mortes. Não há porque ser contra. Quem não comete os crimes de ofensa e agressão, quem respeita o próximo, não tem o que temer. Somos cidadãos, merecemos respeito e proteção da lei. Quando uma só pessoa não tem seus direitos garantidos, ninguém os terá.
O Ministério Público da Bahia determinou que o deputado pastor Isidório (Avante) faça vídeo pedindo desculpas após divulgar críticas e ofensas por você ser homossexual. Está satisfeita com a decisão?
Foi a primeira vez em 53 anos que apresentei queixa-crime contra uma pessoa. Ele ofendeu não apenas a mim, mas a minha mãe e toda a comunidade LGBT+. Ele colocou parte da comunidade cristã, da qual me considero parte, contra mim. Desejo que ele aceite o acordo e compreenda que não pode ofender a mim nem à comunidade LGBT+. Ninguém pode.
Você participou do movimento do #EleNão contra a eleição de Jair Bolsonaro. Como avalia o início do governo?
Bolsonaro assumiu a Presidência e jurou sobre a Constituição governar para todos. Disse que iria priorizar as vítimas de violência, que são, em sua maioria, as minorias. A sociedade está mais ativa do que nunca e nós cidadãos também contamos com o trabalho de instituições fortes como a Procuradoria-Geral da República, o Ministério Público e o Supremo Tribunal Federal. Desejo que o governo federal avance nas questões mais importantes para o Brasil respeitando e apoiando as minorias e preservando o meio ambiente.
Este será seu quarto ano com o Pipoca da Rainha em São Paulo. Por que trazer o trio para a cidade?
O Carnaval está humanizando a arte na rua em São Paulo. Há seis anos, eu já queria levar o trio para os paulistanos, mas achava que seria muito contundente entrar com o trio elétrico sem a cidade pedir por isso. Quando vi que os blocos cresceram da Vila Madalena, que as pessoas estavam tomando as ruas, pensei "vamos florir a avenida". Isso aproxima as pessoas, quebra as barreiras, as distinções de classe. As pessoas vão olhando uma para as outras e percebem que não estão sozinhas. (...) Não largo a cidade de jeito nenhum.
Qual a diferença entre os públicos de Salvador e de São Paulo?
A diferença é que o Carnaval de São Paulo é uma coisa nova, está construindo a sua identidade e mostrando o seu DNA. Já Salvador tem uma longa história. A capital paulista está abrindo espaço para novos artistas e muita coisa vai surgir. Tenho certeza de que o Carnaval de rua de São Paulo vai gerar um novo movimento musical que vai extrapolar a festa.