É tempo de colheita de cogumelos no Rio Grande do Sul. Mas não falo de qualquer um, falo dos comestíveis, daqueles que rendem um belo molho funghi ou que ficam uma delícia simplesmente salteados no azeite.
Chefs de diferentes restaurantes em várias partes do Brasil têm atuado em parceria com especialistas e pesquisadores na área para descobrir novas espécies nativas de fungos e empregá-las em suas cozinhas. E aqui no Estado não é diferente. Há 25 anos colhendo cogumelos que brotam de forma selvagem com a chegada do outono, Altemir Pessali - proprietário dos restaurantes Primo Camilo, em Garibaldi, e Mamma Gema e Pizza Entre Vinhos, no Vale dos Vinhedos - é um dos maiores disseminadores da cultura dos fungos na gastronomia. Para transmitir essa experiência aos leitores, acompanhei por um dia a incursão que e ele e sua mulher Clege Dalmaz fazem pelo interior à procura do ingrediente, que por um tempo passa a fazer parte dos pratos que saem de suas cozinhas.
A COLHEITA
Saí de Porto Alegre em direção a Garibaldi com a missão de chegar lá entre 8h30 e 9h, para que pudéssemos percorrer com tranquilidade os cerca de 120km que separam a cidade de Cazuza Ferreira, localidade pertencente a São Francisco de Paula e um dos redutos dos cogumelos desbravados por Pessali.
- Os fungos nascem no meio do mato, no chão, entre as árvores de pinus das plantações encontradas por todo o Estado - explica. - Tenho o contato de algumas pessoas donas de fazendas que plantam esses pinheiros e consigo permissão para explorá-las.
Pessali acredita que quando foram trazidas ao país, as árvores de pinus vieram infectadas com esporos de cogumelos. Comuns principalmente no Hemisfério Norte, onde o clima é propício para a proliferação dos fungos, eles se adaptaram ao outono fresco e úmido da Região Sul, onde aparecem com frequência. Não é qualquer pessoa, porém, que pode colher cogumelos por aí, em função das espécies venenosas que estão pelo caminho.
- Durante minhas caminhadas, com certeza passo por várias espécies comestíveis de cogumelos. Mas como é muito difícil diferenciar as inofensivas das venenosas sem conhecimento prévio, prefiro seguir buscando somente as duas que sei reconhecer: Boletus edulis e Lactarius deliciosus - avisa Pessali, que há anos estuda livros e livros sobre o assunto ao lado da mulher.
OS COGUMELOS
À primeira vista, os nomes científicos pareciam engraçados e, estrada adentro, já não podia mais contar com a internet do celular para buscas no Google. A solução foi esperar chegar na tal fazenda para presenciar ao vivo e a cores o que Pessali e Clege comentaram na viagem. Algumas coisas, porém, eles já me esclareceram no caminho. Boletus edulis são mais conhecidos como os cogumelos porcini, queridinhos dos italianos e raros de encontrar frescos no Brasil, tanto para vender quanto servidos em restaurantes. Já o Lactarius deliciosus era ainda mais desconhecido para mim. Mas descobri ser uma espécie muito comum na Europa, principalmente em Portugal, onde é conhecido como sancha. E esse foi o que mais encontramos durante o dia.
- São 25 anos colhendo cogumelos porcini e não tenho nenhuma referência, prova falada ou escrita, de que alguém tenha feito isso antes no país, comido e usado comercialmente - orgulha-se Pessali enquanto estaciona o carro já dentro de uma das fazendas.
Duas horas de viagem depois, desci do carro e me deparei com pinheiros por todos os lados, plantados simetricamente em fileiras com a mesma distância entre si. O dia começou com o sol entre nuvens e assim se manteve deixando ainda mais frio e úmido o clima embaixo da copa das árvores. Logo, o casal muniu-se de cestas grandes de vime e de uma ferramenta chamada pinel, com uma pequena faca em uma ponta e um pincel na outra ela serve para cortar o caule e limpar. Clege ainda colocou luvas nas mãos e assim que identificou os cogumelos que procurava já se abaixou para colhê-los, enquanto Pessali adentrava a mata em busca deles. Câmera em punho para registrar em fotos tudo o que eles faziam, saí atrás, apressando o passo para conseguir acompanhar o ritmo de quem faz isso há mais de duas décadas.
- Para nós, colher cogumelos é uma festa. Os que crescem aqui são todos orgânicos, e quase ninguém tem conhecimento disso, apesar de termos em grande quantidade no Rio Grande do Sul - lamenta Pessali. - Mesmo fazendo a colheita duas vezes por semana durante os três meses de outono, não chegamos a colher nem 0,1% da quantidade disponível por aí, e olha que conseguimos recolher cerca de mil quilos por temporada. Eles não duram muito na natureza e apodrecem fácilmente.
No mesmo momento, bateu a dúvida: como fazer para guardar tanto cogumelo considerando que dura tão pouco tempo? A resposta veio em seguida:
- Aos poucos fomos descobrindo uma maneira de armazenar os cogumelos, de forma que conseguíssemos manter o sabor e os aromas de cada um deles. Esse processo faço dentro da cozinha do restaurante e não conto para ninguém. Eles chegam a durar até seis meses, dependendo da saída que tiver no cardápio.
Logo entendi o porquê das luvas usadas por Clege. Os Lactarius deliciosus têm uma coloração laranja e, quando colhidos, sujam as mãos com um líquido da mesma cor. O aroma é bem característico e logo me lembrou dos dias que passo na cozinha preparando algum prato com molho funghi. Na hora, fiquei com vontade de misturar aqueles cogumelos com um creme de leite e jogá-los direto em um prato com espaguete.
Neste dia, os porcini estavam mais raros, mas conseguimos apanhar o suficiente para garantir o almoço e o jantar do dia. Esses são grandes, marrons e carnudos no caule e no chapéu. Lindos de ver e deliciosos de comer.
- Os porcini têm um aroma que lembra amêndoa, avelã e nozes. Podem ser servidos crus, cortados bem fininho sobre a salada, com parmesão. Vão bem com massas, risotos, filés e até mesmo pizza - ensina Pessali. - Mas o cogumelo tem de ser a majestade no prato. Não combina, por exemplo, com vinagre balsâmico e molho de tomate, porque cria uma disputa de sabores.
O ALMOÇO E A VOLTA
Quando a fome bateu, depois de duas horas de caminhada e busca incessante por cogumelos - como a temporada ainda está no início, eles ainda não estão tão fartos, coisa que deve acontecer em seguida -, paramos para um almoço improvisado entre um trecho e outro de pinheiros.
Pessali armou uma grelha, onde depositou duas frigideiras. Em uma delas, preparou os cogumelos recém-colhidos salteados com alho e bacon no azeite de oliva e, depois, tostou os pedaços de queijo coalho. Em outra, fritou os hambúrgueres. Em um pão de xis típico do Sul (muito maior do que um pão de hambúrguer), adicionou os cogumelos, a carne, o queijo e mais cogumelos.
Enquanto isso, Clege estendeu uma toalha de piquenique no chão, onde nos acomodamos para degustar o almoço, acompanhado de um vinho que era novidade para mim. Em parceria com a vinícola Almaúnica, Pessali lançará um vinho próprio que estará disponível em seus restaurantes. Um incrível corte de Merlot e Malbec que caiu como uma luva para a ocasião, e deve ser perfeito para acompanhar as massas e pizzas presentes no cardápio das três casas.
Mal terminamos de comer e já estávamos de volta ao trabalho, recolhendo Lactarius e Boletus e tomando cuidado para ignorar aqueles que não conhecíamos a espécie. Lá pelo início da tarde, eu já estava craque em diferenciar os Lactarius de qualquer outro e me senti orgulhosa em poder contribuir com alguns poucos cogumelos nas quatro cestas cheias colhidas por Pessali e Clege.
Na volta, antes que anoitecesse e que meu ônibus partisse da rodoviária de Garibaldi, Pessali compartilhou comigo um questionamento.
- Alguns ambientalistas dizem que o pinus é uma praga, que mata toda vida ao redor. Que tipo de praga daria um alimento tão bom e tão cheio de nutrientes embaixo dela? - indaga. - Colher cogumelos pode ser uma nova forma de fazer turismo que poderia dar certo aqui no Rio Grande do Sul. Na Europa, a busca pelos fungos é cultural. Tanto é que lá existe um limite de peso que cada pessoa pode colher, com carteirinha de associação e tudo.
* Conteúdo produzido por Juliana Palma