
A risada da gaúcha Betina Camara é daquelas que qualquer comediante gostaria de ouvir da plateia: alta e contagiante. Porém, é ela quem faz com que o riso saia fácil da boca da galera, contando suas experiências cômicas no palco.
Nascida em General Câmara, na Região Carbonífera, filha única da dona Solange e do seu Augusto, suas memórias de infância vêm de Guaíba, onde foi criada. O humor faz parte da vida de Betina desde sempre, pois ela garante que herdou a veia humorística de seu pai. Além disso, ela não passa despercebida por seu jeito divertido e o carisma que exala.
Na próxima segunda-feira (10), ela sai dos palcos e poderá ser vista na telinha da RBS TV, no especial Falas Femininas, programa que usará o humor como ferramenta de abordagem para tratar temas como a discriminação de gênero, eixo principal do programa alusivo ao 8 de março, Dia Internacional da Mulher.
Onde tem reclamação, tem energia de mudança. Se a gente (mulheres) não reclamasse, o que seria da gente agora?
BETINA CAMARA
Comediante
O especial tem apresentação de Marisa Orth, Deborah Secco e Cacau Protásio e conta com as participações de atrizes como Lilia Cabral, Arlete Salles, Elisa Lucinda, Heslaine Vieira, Evelyn Castro, Stella Miranda, Ademara, Marianna Armellini e Angela Dip.
O Diário Gaúcho conversou com Betina Camara, que afirma que o humor é uma ferramenta de poder.
Confira a entrevista com Betina Camara
Desde criança, as meninas são instruídas para se portarem “como menina”. Qual foi a primeira vez em que você se deu conta de que estava sofrendo discriminação de gênero?
Sempre fui fora da curva, sempre me senti um peixe fora d’água na minha família e fui muito revoltada com algumas coisas que via na vida. Sou de uma família matriarcal, com mulheres líderes. Minha mãe teve muitas irmãs, convivi com as minhas tias, que são referências para mim.
Já com meus tios, o cenário era diferente, além de não ter sido criada pelo meu pai. Mesmo assim, percebia na minha família uma "passada de pano" para os homens, algo diferente do que acontecia com as mulheres. Me questionava sobre muitas coisas. Lembro de uma tia que enlouquecia quando chegava um sobrinho na casa, para agradá-lo, enquanto as sobrinhas eram tiradas para parceiras.
Qual foi a maior batalha que você já enfrentou no âmbito discriminatório?
É lidar com essa certeza que as pessoas têm de que não sou capaz de fazer o que me disponho a fazer. Por ser mulher negra, sempre tenho que provar um pouquinho a mais. Então, bato muito na tecla do racismo estrutural. A minha maior batalha tem sido atualmente provar para o meio (do stand-up), para os produtores de comédia, etc, que sou um produto rentável, que tem gente, sim, disposta a pagar para me ver.
Enquanto estava sendo aspirante, abrindo shows, ganhando “merreca” e, muitas vezes, sendo uma questão de afro conveniência, para eles falarem “estou dando oportunidade para uma mulher negra”, tinha oportunidades. Agora, quando é para eu ter o meu espaço, ser a principal, é difícil.
Perante esse cenário, quais foram os sentimentos ao ser convidada para participar do Falas Femininas?
Até brinquei dizendo que era golpe, já estava achando que era sequestro (risos). Bateu um sentimento assim: “Tão longe me valorizando de um jeito que, às vezes, não me sinto valorizada aqui no Estado”. Não me refiro ao público, porque ando na rua e sou abordada, recebo mensagens e muito carinho... chega a ser emocionante a quantidade de mulheres querendo me ver, me ouvir.
Na sua opinião, qual o segredo ou o caminho para solucionar – ou, pelo menos, ajudar – a desigualdade?
É a desconstrução da masculinidade, dos homens baixarem as armas, pararem de se defender e afirmar que não são machistas e entender que o machismo é estrutural. Não é um defeito de caráter, é estrutural, atravessa todo mundo. Em nós, mulheres, (o machismo) vai atravessar como lanças e é capaz de nos matar; nos homens, vai atravessar como, talvez, uma cortina, uma capa que dá para eles superpoderes – que na realidade eles não têm.
O começo de uma mudança está nisso: começarmos a entender a estrutura, pensar o que o capitalismo construiu, porque o patriarcado serve ao capitalismo. O capitalismo, para mim, é a raiz de tudo e ele precisa ser no mínimo revisto.
Em uma sociedade que insiste em nos separar, através do riso e da identificação que o riso traz, todas nós vamos estar nos abraçando.
BETINA CAMARA
Comediante
Qual foi a mudança para o fim da desigualdade entre homens e mulheres que já aconteceu que você julga ser a mais importante?
A independência financeira. A gente ainda tem uma desigualdade de salários, eu sei, mas hoje temos a possibilidade de trabalhar. Temos que lembrar que a questão do trabalho para mulher negra e para mulher branca é completamente diferente. Nós (mulheres negras) somos obrigadas ao trabalho desde sempre, somos descendentes de um povo que foi escravizado.
Acredito muito na ideia de que o conhecimento liberta e, em uma sociedade capitalista, é o dinheiro que te dá liberdade. Estar na Globo, hoje, participando de um programa, é o resultado da resiliência e do trabalho de muitas mulheres que vieram antes de mim. Mas, com certeza, está longe de ser o ideal.
O Relatório Global sobre Desigualdade de Gênero de 2024, do Fórum Econômico Mundial, apontou que serão necessários 134 anos para atingir a paridade de gênero. Você não sente medo de tudo que ainda vem pela frente?
A negritude tem uma coisa muito ligada à nossa religião, religiões de matrizes africanas, as quais são muito ligadas à ancestralidade; nelas, nos olhamos em comunidade, não no individual. Então, olho para trás e vejo que estou melhor que a minha mãe, e consigo olhar para a frente e ver que vai ser melhor para a Vitória, que é a filha da minha prima... o mundo tá se tornando melhor.
Quem sofre tem pressa. Mas, quando a gente se olha numa linha, vendo de onde viemos e, depois, olhando para frente, vendo para onde a gente vai, pensa: “Cara, 134 anos não é nada. É pouco tempo”. Agora, se olharmos apenas como indivíduo, vamos pensar: “Nossa, 134 anos...” (entonação de cansaço).
Que a gente seja livre para criar coisas novas, não só para sobreviver.
BETINA CAMARA
Comediante
Tirando familiares, qual é a mulher mais inspiradora para você?
Fernanda Young (escritora e apresentadora (1970-2019)). Ela tinha um programa chamado Irritando Fernanda Young, que era basicamente falando sobre reclamação. Sempre ouvi as frases: “Ai, tu fala/reclama/bufa demais”. Então era uma coisa que eu tentava segurar em mim. E a Fernanda Young me libertou, porque ela me lembrou que a gente tem coisa pra caramba para reclamar.
Onde tem reclamação, tem energia de mudança. Se a gente (mulheres) não reclamasse, o que seria da gente agora? É porque reclamamos que estamos votando, trabalhando... Então, mulheres, reclamem! Tem uma energia muito potente nas reclamações das mulheres.
Falando sobre o Falas Femininas, qual a importância de um programa como esse passar em rede nacional, alcançando tantas brasileiras?
O Falas Femininas é o megafone de mulheres. Sempre fomos retratadas pelos olhares dos homens. Agora, são as mulheres falando. A Globo deixou que pegasse um texto meu e falasse em rede nacional sobre o meu ponto de vista.
Muitas mulheres vão se identificar. E quando nos identificamos com a fala de outra mulher, nos sentimos abraçadas, porque percebemos que não estamos mais sozinhas. Em uma sociedade que insiste em nos separar, através do riso e da identificação que o riso traz, todas nós vamos estar nos abraçando.
Qual o maior conselho que você daria para uma mulher?
A gente vive numa sociedade que está estruturada em nos despotencializar. Então, quando tu estiver em alguma situação e achar que falhou, tu até pode ter falhado, mas é 10% disso que tu acha que falhou. Tira todo o suco da crítica, da culpa cristã, da misoginia, do machismo... E se em algum momento te fizeram acreditar que não és merecedora do amor, estão completamente errados. Não existe ser humano na Terra que não mereça ser amado.
Qual é o seu maior desejo para este 8 de Março?
Que a gente seja livre. Livre para ser quem somos, para criar. A gente é tão criativa, né? Que a gente seja livre para criar coisas novas, não só para sobreviver. A gente gera vida o tempo inteiro (refere-se às atividades desenvolvidas por qualquer mulher, desde que mais simplória).