Cinco anos após a tragédia que ceifou a vida de 242 jovens, na boate Kiss, em Santa Maria, a jornalista mineira Daniela Arbex lançou o livro Todo Dia a Mesma Noite (editora Intrínseca), em que reconstitui, em 248 páginas, os eventos daquele 27 de janeiro de 2013. Agora, quando o incêndio completa uma década, a obra ganha uma adaptação para o audiovisual, em uma minissérie homônima que será lançada pela Netflix nesta quarta-feira (25).
Em cinco episódios, com cerca de 45 minutos cada, a produção conta com direção-geral de Julia Rezende e roteiro de Gustavo Lipsztein, além de consultoria criativa da própria Daniela Arbex. A minissérie transforma a história em uma ficção, baseando-se nos dramas reais das vítimas, sobreviventes, familiares e envolvidos na tragédia — estas pessoas, por sinal, ainda buscam justiça.
GZH conversou com a equipe e o elenco da atração em São Paulo no último dia 19, a convite da plataforma de streaming. Durante o encontro, foram explicadas algumas decisões tomadas pelos responsáveis pelo programa.
Uma das principais mudanças da minissérie em relação ao livro, além da mudança de nomes dos personagens, é na narrativa: enquanto a obra de Daniela Arbex explora em detalhes o momento do incêndio, intercalando as vidas perdidas com a relação com os familiares, o programa da Netflix destina pouco tempo para o dia da tragédia em si e coloca o seu foco nos tribunais e no sofrimento dos dias que passam sem respostas.
— Tínhamos muitos desafios, mas sobretudo o de encontrar o tom para não fazer nada que fosse insuportável para quem assistisse. Acho que a gente achou uma medida de trazer o espectador para a cena, de colocar o público no centro do acontecimento. Eles empatizam com aqueles personagens antes do incêndio e, de repente, a gente inesperadamente vê aquilo acontecer — explica a diretora.
Estas alterações, antes de serem gravadas, foram estabelecidas no roteiro de Lipsztein, que, ao ler o livro de Daniela, sentiu que o mundo precisava saber o que havia acontecido com aqueles 242 jovens há uma década. E, principalmente, colaborar para que a tragédia não caísse no esquecimento.
— O livro é maravilhoso, mas como contar essa história? É muito forte. E o que me pegou foi que a história, na verdade, é de procura por justiça — destaca o roteirista, enfatizando que um dos pontos de partida para a criação da minissérie foi quando quatro pais de vítimas foram processados pelo Ministério Público. — Como isso aconteceu? Como os anos se passaram sem justiça, mas os pais foram processados antes que qualquer outro fosse?
Com um livro que, mesmo forte, consegue ser sensível e criar laços afetivos entre os personagens, Daniela Arbex conta que ficou emocionada com o resultado da produção audiovisual:
— Desde o começo, a minha maior preocupação era que esse tema fosse tratado com todo o respeito que o livro traz. E isso aconteceu. Acho que a série é muito potente, para que as pessoas possam enxergar o quão longo é o caminho por justiça no Brasil. Através desses quatro pais retratados na série, estamos contemplando todos os pais e contando essa história para o mundo. Acho que as pessoas vão ficar muito impactadas ao verem que, 10 anos depois, a justiça ainda não foi feita.
Responsabilidade
A Netflix não levou sua produção para Santa Maria em respeito à cidade. Então, são mostradas apenas imagens aéreas do município, e o restante é reconstituído em outras localidades, principalmente fora do Rio Grande do Sul — de fora do Estado, também, é a maioria dos artistas que protagonizam a série. De acordo com Julia Rezende, para a seleção do elenco, foram escolhidos os "atores certos" para cada personagem. Assim, há mineiros, paulistas, cariocas, entre outros, dando vida a gaúchos. Mas ainda assim há artistas do Estado — como Raquel Karro, de Itaqui, que vive a mãe de uma vítima.
Para ajustar o sotaque dos atores, foi feito um trabalho de prosódia e, além disso, a diretora explica que havia um profissional do Rio Grande do Sul no set para supervisionar como estava sendo criada a "voz gaúcha". A ideia é que a história converse com o mundo inteiro, que a minissérie encontre acolhimento e que evite que esta tragédia caia no esquecimento e, consequentemente, não se encontre justiça.
Paola Antonini, modelo e influenciadora digital, faz a sua estreia como atriz dando vida a Grazi, uma sobrevivente da tragédia que acaba tendo a sua perna amputada — tal qual a sua intérprete, que sofreu um acidente em 2014. Ela destaca que o papel foi muito desafiador e, por isso, se preparou bastante.
— Foi uma experiência muito emocionante. Era muita responsabilidade que a gente tinha ali, por ser um tema tão sensível, e eu acho que a gente queria contar essa história da melhor forma possível, dando tudo da gente. Isso tudo feito com muito respeito e cuidado. E a mensagem é muito importante, para lembrar para todo mundo desta história, da busca por justiça. Então, estamos exercendo uma função social — destaca Paola.
Para Luan Vieira, que interpreta Guilherme, a palavra-chave também foi "responsabilidade":
— Fico muito satisfeito como um cidadão político, que está colaborando para deixar esta memória viva e não deixar essa tragédia virar passado. Precisamos colaborar para que o futuro seja diferente do que foi. Tem uma carga emocional, óbvio, mas tem um cuidado, um sentimento de respeito a essas vidas.
Aos olhos dos pais
Paulo Gorgulho, Raquel Karro e Bianca Byington tiveram alguns dos papéis mais desafiadores da atração: os dos pais das vítimas do incêndio. Recai sobre eles o peso de dar a dimensão de todo o drama vivido pelas famílias que foram devastadas naquele 27 de janeiro de 2013. E como a série foca o pós-tragédia, ainda é preciso mostrar, por meio de suas ações, a força do elo com seus filhos.
Bianca, que interpreta a personagem Ana, mãe de Felipinho, afirma que a intensidade da série e a tragédia do episódio fazem com que o sentimento necessário seja entregue em cena, mesmo para quem não tem filhos, como é o caso dela:
— Essa dor coletiva, essa luta coletiva representa não apenas uma coisa específica que aconteceu em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, mas que poderia ter acontecido em qualquer outro do lugar do país.
Gorgulho e Raquel, que interpretam, respectivamente, Ricardo e Lívia, os pais de Marco, entregam uma das cenas mais fortes da série, que é bem adaptada do livro: ambos começam a correr por um estacionamento próximo da boate, disparando o alarme do carro que o filho dirigia. Se apitasse, significaria que ele havia ido ao local.
— Essa foi a última cena que a gente fez na série, então tinha uma emoção da equipe toda. E a gente gravou no Dia das Mães. Tivemos uma preparação com a Helena Varvaki, que fez com que eu me conectasse com o Sandro Aliprandini (ator que vive Marco), e isso fez com que eu precisasse pensar no meu filho. Então, a dor que eu senti era pelo Sandro. Lembro a primeira vez que eu vesti a camiseta com a fotinho dele eu não consegui esticar a minha coluna. Eu ficava chorando só de vestir a camiseta, porque é muito forte — conta Raquel.
O parceiro de cena da gaúcha de Itaqui destaca que faz diferença ser oriundo do teatro:
— Quando você vem para essa profissão vindo do teatro e chega à televisão, vem com uma formação muito clara, e o personagem te defende. Então, você chora pela dor da existência. Você é, naquele momento, o tradutor, o arauto da condição humana.