"Gostaria de morrer de pé, no ano de 3047". A megalomania de Pablo Escobar diante de um jornalista, na segunda temporada de Narcos, ilumina aspectos folclóricos de sua figura, como a vaidade, a ostentação e a confiança em sua onipotência. O narcotraficante colombiano se via – e era assim visto pelos que lhe temiam ou idolatravam – como um semideus. Essa característica de sua personalidade o alçou à posição de um dos homens mais ricos do mundo e senhor absoluto da Colômbia durante seu reinado de terror. E foi responsável também por sua derrocada. Morreu estirado em um telhado, em 1993.
Com seus 10 episódios lançados pela Netflix nesta sexta-feira, a segunda temporada de Narcos acompanha os últimos meses de vida de Escobar, desde sua fuga de La Catedral, prisão que havia construído para si mesmo nos arredores de Medellín, em julho de 1992. E destaca a complexa e peculiar operação armada em sua caçada, um arranjo de forças que interligou os governos dos Estados Unidos e da Colômbia, cartéis rivais de Escobar e um grupo paramilitar de extrema-direita.
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Esse emaranhado de interesses somados para caçar o traficante tem paralelo com outras ações pelo mundo em diferente épocas que, com o pretexto de combater um inimigo, criam efeitos colaterais tão danosos ou ainda piores do que o alvo inicial – os fundamentalistas do Talibã e do Estado Islâmico são exemplos extremos dessas malfadadas alianças e intervenções.
Com eficiência narrativa e revelador didatismo, Narcos detalha o envolvimento direto dos EUA na operação. Na primeira temporada, já estavam em campo os agentes da divisão de combate às drogas do governo americano, a DEA, Steve Murphy (Boyd Holbrook) e Javier Peña (Pedro Pascal). Agora, a guerra ao tráfico que cobriu de cocaína Miami e Nova York foi tomada como missão pessoal pelo presidente republicano George Bush – o combate que ele começou foi concluído por seu sucessor, o democrata Bill Clinton.
Assim, desembarcam na Colômbia um novo embaixador com largo histórico militar para coordenar os trabalhos e, sem tanto alarde, um calejado agente da CIA. Enquanto um faz o jogo político com as autoridades locais, o outro circula pelas sombras e se embrenha na selva para recrutar um reforço que se mostrará crucial no cerco a Escobar: a força paramilitar que combate a guerrilha comunista e tem o traficante como inimigo. Entram em cena ainda ex-aliados de Escobar que, sentindo a base do chefão ruir, querem um fatia maior nos negócios e o até então discreto, mas igualmente poderoso e violento, cartel de Cáli, já projetando a expansão de território. Um capo local ilustra a bizarra situação de forma fabular ao agente Peña: "A serpente e o gato querem matar um ao outro, mas podem parar de brigar para devorar um rato".
Os brasileiros José Padilha, produtor executivo de Narcos, e Wagner Moura, ator que cumpriu o desafio de compor um Escobar múltiplo em nuanças psicológicas, exigente também na transformação física e na barreira linguística, encontram em Narcos um território muito parecido com o que mostraram nos dois filmes Tropa de elite. A Colômbia de Escobar, como o Brasil de hoje, viu o poder público sucumbir à violência e a corrupção, com bandidos impondo governos paralelos onde o Estado é ausente e omisso. Esse vácuo institucional faz florescer um outro tipo de poder criminoso. Estabelecendo uma analogia com as milícias brasileiras que se colocam como agentes do bem praticando o mal, a guerra a Escobar colocou no asfalto o tal grupo paramilitar alimentado na selva com armamento moderno pela CIA.
Batizados Los Pepes (Os perseguidos por Pablo Escobar), esses soldados bem treinados foram combater o fogo que ardia em Medellín com gasolina. Tocaram o terror na cidade com torturas e execuções sumárias seguindo o rastro do cada vez mais acuado Escobar. Em muitas de suas incursões, Los Pepes foram guiados por agentes do DEA e traficantes rivais de Escobar. E Escobar fez o que pode para sobreviver sem se curvar, até o que mais lhe dava fobia: viver entocado como um rato. Enquanto teve dinheiro, montou uma bem articulada rede de informação e proteção para sua família. Conseguiu nesse período de fuga assustar seus perseguidores com contra-ataques espetaculares. Mas a cada nova onda de ataques terroristas, queria mais sangue. A ciranda não podia parar. Foi seu maior erro.
No capítulo final de Narcos, o agente Steve Murphy volta a evocar o realismo mágico de Gabriel García Márquez para tentar compreender aquele delirante cenário em que o extraordinário se materializa para reger a realidade. Esse desfecho é todo dedicado ao cerco final a Escobar. Escondido em um pequeno sobrado de Medellín com o único capanga que lhe sobrou, El Patrón foi mais uma vez traído por ele mesmo: desdenhando do aparato tecnológico que monitorava a cidade, foi pego em razão das longas conversas que mantinha com a mulher e os filhos pelo rádio.
Realidade e ficção se embaralham o tempo todo em Narcos. Sempre que a encenação do espetáculo macabro patrocinado por Escobar e pelos Los Pepes parecer um exagero dos roteiristas, imagens de arquivo dos telejornais sublinham que o terror vivido na Colômbia nos anos 1980 e 1990 foi muito verdadeiro.
Morto Escobar, Narcos seguirá adiante, como indica a sequência final, com o agente Peña designado para um nova missão: combater o cartel de Cáli, que passou a reinar sozinho no abastecimento global de cocaína. É um inimigo mais difícil de ser combatido. Diferentemente do perfil popular e espalhafatoso de Escobar, aqueles outros barões das drogas são executivos engravatados e de gostos refinados. Não tem como se dizer qual é o pior tipo.