
É em meio às lágrimas que Beatriz Gonçalves Pereira, 62 anos, reage à possibilidade de remoção do mural que estampa seu rosto na fachada lateral do prédio do Departamento Autônomo de Estradas e Rodagem (Daer), na Avenida Borges de Medeiros, na região central de Porto Alegre.
Mãe de santo, educadora social, carnavalesca e artesã, a moradora da Ilha da Pintada é a figura feminina retratada pelo painel, que passou a integrar a paisagem urbana da Capital ainda no início de 2022. Três anos depois, a obra de 65 metros de altura e 15 de largura, que é assinada pelos artistas plásticos Mona Caron e Mauro Neri, corre o risco de ser retirada do local, onde também funciona a Procuradoria-Geral do Estado.
Para Beatriz, isso seria uma involução.
— Um rosto negro estampado a 65 metros de altura, em uma cidade racista como Porto Alegre, tem que ser lido como uma conquista. Não sou somente eu que estou retratada ali, são todas as mulheres e os homens pretos da cidade, são todos os moradores das ilhas e todo o povo das religiões de matriz africana. O apagamento deste mural é um retrocesso que não podemos admitir — emociona-se Beatriz, que é conhecida pela alcunha de Bia da Ilha.
A informação sobre a possível remoção do painel veio à tona no início deste ano, após a publicação de uma reportagem do jornal Matinal, e foi posteriormente confirmada pelo Daer.
De acordo com o órgão, o paredão que serve de tela para a obra precisa passar por uma revitalização. As pastilhas que ornam as fachadas da edificação, construída em 1972, estariam caindo das paredes e oferecendo riscos. A troca das peças implicaria no apagamento do mural, pintado sobre elas.
Sou uma mulher inquieta com as injustiças, os preconceitos e os descasos, uma mulher que não consegue ficar calada, mas que usa a sua voz para amplificar uma luta que é de muitos.
BEATRIZ GONÇALVES PEREIRA
Mãe de santo, educadora social, carnavalesca e artesã
A notícia teve grande repercussão junto aos movimentos sociais e culturais, levando o Daer a dialogar com as entidades envolvidas na concepção do painel. Em reunião realizada no final de fevereiro, o departamento comprometeu-se a iniciar a obra pelos outros pontos a serem revitalizados, deixando os trabalhos na fachada que abriga a pintura para o final.
Conforme o diretor do Daer, Luciano Faustino, a medida deve postergar a remoção até, pelo menos, o segundo semestre de 2026, mas não garante a permanência do mural.
Em entrevista à Zero Hora, o gestor frisou que o departamento está empenhado na busca por uma solução que permita realizar a obra sem precisar apagar o painel. Segundo ele, a parede em questão está menos danificada que as demais, mas ainda precisa passar pela revitalização.
— Temos a necessidade de realizar essa reforma há algum tempo, e isso era de conhecimento das partes envolvidas na concepção do mural desde a época em que ele foi feito. Ainda assim, estamos em busca de soluções. Mesmo quando a obra estiver iniciada, vamos permanecer abertos ao diálogo. Se uma alternativa viável surgir, podemos incorporá-la ao projeto — afirma Faustino.
Contudo, nenhuma solução foi encontrada para o impasse até o momento, segundo o diretor. Mantém-se, portanto, a previsão de remoção do painel, provavelmente em 2026.
Para Beatriz, o panorama incerto é motivo de "profunda tristeza". A mãe de santo reconhece e elogia a boa vontade da direção do Daer, mas cobra por uma definição que assegure a manutenção do painel.
— Entendo toda a questão do prédio ser antigo, a necessidade da reforma, mas precisa haver uma outra saída, algo que permita trocar as pastilhas que estão com defeito sem apagar totalmente o painel. Estamos felizes que ele ficará lá por mais um tempo, mas não vamos descansar enquanto não tivermos uma garantia de que não haverá remoção — diz a moradora da Ilha da Pintada.
No mural, ela está retratada com as mãos abertas, ostentando uma muda de Justicia gendarussa. A planta é conhecida como quebra-demanda e é bastante utilizada nas religiões de matriz africana.
Quando uma jovem negra olha um mural daquele tamanho e vê uma mulher parecida com ela, entende que a cidade também é dela, apesar de todo o racismo que existe aqui
BEATRIZ GONÇALVES PEREIRA
Mãe de santo, educadora social, carnavalesca e artesã
A obra foi executada por Mona Caron e Mauro Neri entre novembro de 2021 e janeiro de 2022. O planejamento envolveu cerca de 130 entidades, entre empresas, sindicatos, instituições e pessoas físicas que ajudaram a custear o mural, com apoio do poder público.
Cerca de três meses de trabalho e mais de 100 litros de tinta foram necessários para pintar a imagem de Beatriz na fachada do Daer. O resultado artístico chamou atenção da população de Porto Alegre pela imponência e qualidade estética, mas, no entendimento da modelo, a obra ultrapassa o escopo do embelezamento urbano.
— A pintura é uma possibilidade de referência para a juventude negra da cidade, o tipo de referência que eu não tive na minha infância e que me fez muita falta. Quando uma jovem negra olha um mural daquele tamanho e vê uma mulher parecida com ela, entende que pode chegar aonde quiser e que a cidade também é dela, apesar de todo o racismo que existe aqui. Essa obra dá força aos pretos e pretas de Porto Alegre, para que eles continuem resistindo — reflete Beatriz.
Trajetória de lutas reconhecida
Resistência é uma palavra frequente no vocabulário da mulher que dá vida ao mural. Nascida no Hospital Beneficência Portuguesa, na região central de Porto Alegre, Beatriz foi para a Ilha da Pintada com apenas três dias de vida. Já são mais de 60 anos vividos na região cercada pelas águas do Delta do Jacuí e do Guaíba.
Beatriz diz que sua identidade enquanto mulher e cidadã é moldada, também, pela experiência de viver na Ilha da Pintada. Ela perde as contas de quantas lutas já travou junto à comunidade do bairro Arquipélago, que ainda engloba a Ilha Grande dos Marinheiros, a Ilha Mauá, a Ilha do Pavão e a Ilha das Flores.
— Morar nas ilhas é resistir todos os dias, porque nós sempre fomos negligenciados — define.
— Vivemos em um bairro que é muito diferente dos outros, mas que não tem as suas especificidades consideradas pelas políticas públicas. É claro que a vida melhorou muito para o povo das ilhas ao longo desses 60 anos, mas todas as nossas conquistas foram na base da luta, sempre dialogando com os governos e, nas vezes em que o diálogo não funcionou, fechando a BR — afirma ela, que é conselheira do Orçamento Participativo desde o início de sua implementação.
Beatriz é figura amplamente conhecida na região da Ilha da Pintada — não à toa, recebeu a alcunha de Bia da Ilha. Ao andar pelas ruas da comunidade, cumprimenta a todos que cruza pelo caminho com surpreendente tom de intimidade.
A minha missão é ajudar as pessoas, e eu não almejo ser nada além do que já sou.
BEATRIZ GONÇALVES PEREIRA
Mãe de santo, educadora social, carnavalesca e artesã
Vice-coordenadora do Instituto Camélia, ela é referenciada como uma das lideranças do local, mas rejeita o título. Prefere ser chamada de "colaboradora popular".
— Meu povo (negro) tem um ditado no qual acredito muito: "Eu sou porque nós somos". Nunca fiz nada sozinha. Aliás, ninguém faz nada sozinho nesse mundo. Por isso não gosto de ser chamada de "líder". Sou uma mulher inquieta com as injustiças, os preconceitos e os descasos, uma mulher que não consegue ficar calada, mas que usa a sua voz para amplificar uma luta que é de muitos — explica.
Além de porta-voz das demandas da comunidade, a mulher que estampa a fachada do Daer também é fonte de conforto e amparo espiritual para os moradores da região das ilhas. No mesmo terreno em que vive, ela mantém a unidade territorial tradicional Reino de Yemanjá e Oxossi, do qual é a ialorixá responsável.
— A umbanda é a minha fé e a minha força diante das dificuldades. Uma força que vem dos meus ancestrais, daqueles que resistiram à escravidão e guerrearam para que pudesse estar aqui hoje — diz.
Comunidade aberta
No Reino de Yemanjá e Oxossi, Beatriz é mãe de 60 filhos de santo. Segundo ela, a casa também está aberta a todos aqueles que buscam fortalecimento, sem distinção de raça, gênero, orientação sexual ou até mesmo do credo.
Para a mãe de santo, a vida só tem sentido se for em serviço do próximo:
— O nosso espaço é destinado a qualquer pessoa que precise de acolhimento ou de uma palavra de conforto, independentemente da religião que ela siga. A comunidade sabe que as nossas portas estão sempre abertas e dispostas a atender qualquer demanda, seja um trabalho religioso ou uma cesta básica, um conselho, um abraço. A minha missão é ajudar as pessoas, e eu não almejo ser nada além do que já sou.
Em maio de 2024, Beatriz também precisou ser ajudada. O terreiro e a casa em que ela vive com a família, nos fundos do templo religioso, foram totalmente tomados pela água da enchente histórica.
Dos móveis da residência às imagens sagradas que ornavam o congá do Reino de Yemanjá e Oxossi, praticamente tudo foi devastado pela inundação. O que ficou foram as marcas nas paredes, como lembranças inconvenientes da tragédia climática que, para quem vive nas ilhas, já era uma tragédia anunciada.
— Nós já passamos por muitas enchentes, mas nada perto do que vimos acontecer em maio. E não adianta culpar a natureza, porque ela está cobrando o preço da irresponsabilidade humana. Há anos o povo das ilhas denuncia o que está acontecendo com o meio ambiente, há anos nós alertamos e cobramos por soluções — comenta Beatriz.
Apesar das dificuldades, a mãe de santo não pensa em deixar a Ilha da Pintada. Para ela, nenhum lugar do mundo supera a comunidade em que cresceu e estabeleceu sua vida.