Nas festas pomposas oferecidas por famílias abastadas no século 19, era comum designar um escravizado para receber os visitantes. Empunhando uma lamparina para iluminar a entrada, o criado carregava na outra mão uma bandeja na qual eram depositados os convites para os convescotes da elite que conduzia os rumos da política e da sociedade no então majoritariamente rural Rio Grande do Sul.
Nessa mesma época, o médico Carlos Barbosa Gonçalves, desgostoso com a exploração dos negros, tentava pregar a mensagem abolicionista, mas sem arroubos que levassem ao rompimento das relações com fazendeiros e aristocratas. Em viagem a Veneza, na Itália, Barbosa deparou com o símbolo que procurava: a estátua de um mouro, vestindo roupas nobres e segurando um candeeiro.
Desde o retorno, o menino negro trajado em vestes elegantes esculpido em madeira passou a ornar a entrada da casa de Barbosa e de sua família em Jaguarão, na fronteira com o Uruguai. O gesto era modesto, mas suficiente para passar a mensagem emancipadora a qualquer um que adentrasse pela porta: ali não havia espaço para a subjugação de outros seres humanos.
Viagem ao século 19
Um século e meio depois, o mouro veneziano continua recepcionando os visitantes da casa, que se transformou em um museu dedicado a preservar o legado de Carlos Barbosa, médico e político que foi governador do Rio Grande do Sul, presidente da Constituinte Estadual de 1891 e senador da República.
De móveis a documentos, de vestimentas a objetos valiosos, o relicário reúne cerca de 4 mil itens catalogados, que transportam os visitantes para uma viagem sem escalas ao século 19, em um espaço tombado como património histórico do Estado e da União.
Desconhecida da população gaúcha e quase escondida no Extremo Sul gaúcho, a um quilômetro da ponte que marca a fronteira com o Uruguai, a casa museu é mantida por uma fundação administrada por voluntários. Transformado em museu em 1977, o casarão não recebe dinheiro público e é mantido com recursos deixados pelos herdeiros de Barbosa, que não tem mais descendentes diretos vivos.
Residência aristocrática
Com estilo eclético e 656 metros quadrados divididos em 23 cômodos, o casarão histórico reproduz o cenário de uma residência aristocrática do final do século 19, com mobiliário em estilo neoclássico, característico daquele período histórico. Primeira moradia com energia elétrica em Jaguarão, guarda o primeiro telefone residencial da história do Estado.
Entre os tesouros resguardados no museu, também estão um conjunto de louça em porcelana francesa personalizada com o brasão da família, acompanhado de talheres de prata. Na mesma sala de jantar, iluminada com um lustre de bronze, uma cristaleira guarda um jogo de copos e taças de cristal com mais de cem peças.
No quarto do casal, lâmpadas inglesas e uma estufa datadas de 1900, que se mantêm em funcionamento, dividem espaço com os móveis de madeira francesa, adquiridos em Paris, e com o casaco utilizado por Barbosa na posse como governador do Estado — na época, presidente da província.
O móvel mais antigo da casa é uma cômoda de jacarandá que a esposa de Barbosa, Carolina, herdou de sua avó. Com as entradas de chaves e os puxadores feitos com ossos de animais, a cômoda de mais de 200 anos serve de base para uma floreira de cristal murano.
Entre os principais documentos preservados no museu, estão um exemplar da Constituição Estadual de 1891 e o plano de obras do Palácio Piratini, que teve a segunda pedra fundamental lançada no governo de Carlos Barbosa.
Presidente da fundação que gerencia o museu, o veterinário Clóvis Teixeira Gonçalves da Silva salienta que o objetivo da gestão é estimular a visitação para divulgar o legado do homenageado.
— A gente sempre quis conservar aqui com o máximo cuidado. Sempre achei que faltava abrir para visitação. Então agora estamos mudando isso — relata Clóvis, neto de um primo do ex-governador.
Gestão com herança da família
O casarão da Rua Quinze de Novembro serviu de moradia à família de Carlos Barbosa a partir de 1886. Última filha viva do líder político, Eudóxia de Lara Palmeiro faleceu em 1975 e deixou em testamento o desejo de doar todos os bens para criar um museu biográfico do pai na residência da família.
O patrimônio da fundação foi ampliado em 2000, quando Lucy Barbosa Gonçalves, neta de Barbosa e última descendente direta da família, passou suas propriedades em Jaguarão para a instituição. Falecida em 2007, Lucy não teve filhos.
Diante do valioso patrimônio que inclui imóveis e propriedades rurais, a casa museu Carlos Barbosa é mantida apenas com recursos privados, provenientes da exploração da agricultura e da pecuária em uma fazenda e uma granja que somam 2,1 mil hectares.
Enquanto boa parte dos museus e centros culturais dependem de repasse de verbas públicas para a conservação, no caso de Jaguarão a fundação é que se tornou fonte de recursos para o município, auxiliando entidades filantrópicas como a Santa Casa da cidade e uma casa de idosos. O prefeito Rogério Cruz (MDB) celebra:
— Além de um patrimônio histórico, a fundação é uma base do nosso município. Até mesmo quando precisamos recuperar as estradas depois da enchente recebemos ajuda. Aqui não tem dinheiro do poder público, o município é que muitas vezes recebe dinheiro da instituição.
No último dia 15 de maio, a fundação Dr. Carlos Barbosa Gonçalves comemorou os 50 anos da criação, datada de 1975. O evento, exclusivo para convidados e autoridades, marcou o início de uma série de atividades comemorativas ao longo do ano. Na ocasião, também teve início a mobilização política para dar o nome de Carlos Barbosa à nova ponte que será construída para ligar o Rio Grande do Sul ao Uruguai, sobre o Rio Jaguarão, na BR-116.
Quem foi Carlos Barbosa
Nascido em Pelotas em 1851, Carlos Barbosa Gonçalves migrou ainda criança para Jaguarão com a família. Filho de estancieiros, era sobrinho-neto de Bento Gonçalves. Na adolescência, foi estudar no Rio de Janeiro, onde se formou em Medicina. Seguiu para a Europa e atuou em hospitais de Paris.
De volta a Jaguarão, casou-se em 1879 com Carolina Cardoso de Brum. O casal teve oito filhos, dos quais cinco morreram ainda crianças.
Crítico da monarquia, era republicano e abolicionista e tornou-se um dos líderes do Partido Republicano no Estado, incentivado por Júlio de Castilhos. Eleito deputado estadual em 1981, presidiu a Assembleia Constituinte.
Em 1907, foi eleito presidente do Estado, cargo equivalente ao de governador, e esteve à frente do governo entre 1908 e 1913. Sua gestão equilibrou finanças, incentivou a indústria e fez diversas obras. Ainda em vida, recebeu homenagem dando nome ao município de Carlos Barbosa, da serra gaúcha, em gesto de agradecimento pela construção da ferrovia Montenegro-Caxias do Sul.
Eleito senador em 1920 e reeleito em 1927, renunciou à cadeira em 1929 por motivos de saúde. Faleceu em 1933, aos 82 anos, em Jaguarão.
Como visitar a Casa Museu Dr. Carlos Barbosa Gonçalves
- Endereço: Rua Quinze de Novembro, 642, em Jaguarão (RS)
- Horário: de segunda-feira a sábado, das 9h às 11h e das 14h às 17h; aos domingos, mediante agendamento
- Ingressos: R$ 10 (crianças de até cinco anos não pagam e escolas têm descontos)
- Agendamentos e outras informações pelo Instagram