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Na manhã de 8 de junho de 1985, Marco Aurélio Simon, 15 anos, realizava, juntamente com o grupo de escoteiros do qual fazia parte, uma expedição ao cume do Pico dos Marins, uma das montanhas mais altas do país, localizada na cidade de Piquete, em São Paulo. Após um dos meninos machucar o joelho e precisar ser carregado, o chefe dos escoteiros e único adulto presente, Juan Bernabeu Céspedes, autorizou que Marco Aurélio fosse na frente para direcionar o grupo de volta ao acampamento. Foi a última vez que o adolescente foi visto.
O caso resumido acima ganhou repercussão nacional, tornou-se uma das maiores buscas por um civil na história do país e, mesmo assim, segue sem solução até hoje. A história voltou a conhecimento do grande público recentemente graças ao podcast do Globoplay Pico dos Marins: O Caso do Escoteiro Marco Aurélio, criado e narrado por Marcelo Mesquita — incluindo a participação da família do desaparecido, com destaque para o pai, Ivo Simon.
Com cinco episódios já lançados — são 10 no total, de mais ou menos uma hora cada —, Pico dos Marins é o resultado de quatro anos de trabalho de Mesquita, documentarista que faz a sua primeira incursão no mundo dos podcasts. Segundo ele, tal experiência traz mais liberdade e também permite um maior aprofundamento na história, que não é necessariamente sobre um crime, uma vez que Marco Aurélio pode ter sofrido um acidente ou, então, ainda estar vivo, mesmo após 37 anos. Ou seja, é um caso ainda não solucionado.
— Acho que dois pontos explicam a audiência dos podcasts de true crime: o primeiro é mistério, o que leva uma pessoa a esse extremo, trazendo um pouco de luz sobre algo que é completamente sombrio. Por um outro lado, o que eu acho que é realmente mais interessante é o lado humano de uma história. Por exemplo, como a do Marco Aurélio, a gente está contando a história de uma família, de um pai que busca incansavelmente, que não desiste — avalia Mesquita.
O criador de Pico dos Marins passou os últimos anos se aprofundando na história, mas com responsabilidade. Ele teve acesso irrestrito à família de Marco Aurélio, que participa ativamente do podcast e ajuda a direcionar a história. De acordo com Mesquita, isso é fundamental, uma vez que o caso está em curso, com reabertura do inquérito no ano passado, sendo investigado pela família e pela polícia.
— Qualquer passo em falso, você pode gerar questionamentos sobre algo que ainda pode ser desdobrado em uma solução. Então, você precisa tomar muito cuidado. Eu tenho total acesso às informações que estão de posse da família e acho que essa é a principal chave. Não é simplesmente ligar um microfone e sair falando. Você precisa entender o lado da vítima, aproximar-se e compreender como contar essa história — reforça Mesquita, sobre a importância de se basear em dados e não tratar a história de maneira leviana ou sensacionalista.
O barulho que a estreia de Pico dos Marins está fazendo, inclusive, pode ter tido um efeito no próprio caso, que foi reaberto em 2021, graças ao pai de Marco Aurélio ter reunido novas provas: uma escavação, prevista para janeiro de 2023, em busca de possíveis restos mortais do escoteiro, foi antecipada para este mês, na tentativa de dar conclusão ao inquérito. Nada foi encontrado, porém. O mistério continua.
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Lendas do RS
Fascinada pelo mundo dos serial killers, a publicitária Michele Rocha, em parceria com a jornalista Lu Candido, ambas gaúchas, criou recentemente o Roubaram Meu Rim, explorando, de forma mais curta, com uma média de 10 minutos por episódio, os crimes reais por trás de lendas urbanas — e, no Rio Grande do Sul, de acordo com ela, não faltam histórias que vivem no imaginário popular. Assim, a dupla, na maioria das vezes, cria narrativas ficcionais em cima dos fatos, buscando respeitar as vítimas, mas expor o modus operandi do assassino.
De acordo com Michele, outro ponto essencial para contar as histórias é ter responsabilidade com os fatos e, por isso, é necessária uma pesquisa aprofundada. E ela fez isso, inclusive, para um dos próximos episódios do podcast, que abordará a lenda da Noiva da Lagoa dos Barros — para a construção da narrativa, as comunicadoras se basearam nos laudos do assassinato da jovem que inspirou a lenda, em 1940, no Litoral Norte.
— É importante não dar palco para assassinos, a gente conta, na nossa narrativa, quem foram as vítimas e relembra que existem famílias por trás disso, não banalizando esses crimes, mas investigando a mente humana. Tem gente que vai pelo sangue. E o fascínio pela violência é intrínseco ao ser humano, desde que o mundo é mundo. Se tu pegar, por exemplo, a questão das bruxas ou das pessoas que eram condenadas e expostas em praça pública para o pessoal assistir. Era um tipo de entretenimento — detalha Michele.
Para ela, além dos programas de true crime despertarem nas pessoas um sentimento de que são investigadoras, eles também servem para jogar luz nas questões sociais. Segundo Michele, boa parte dos serial killers são homens brancos e cometem crimes contra pessoas do sexo feminino. Assim, recontar estas histórias denuncia como essas mortes se deram e, até mesmo, podem alertar pessoas que poderiam ser vítimas — inclusive, a comunicadora aponta que as mulheres são a maioria entre ouvintes.
— Essa menina que foi assassinada nos anos 1940, que deu origem a essa lenda da Lagoa dos Barros foi por puro machismo. Tu pegas pontos da sociedade e entende algumas motivações do crime, trazendo à tona algumas questões sociais no entorno dele. Então, a gente quer falar mais do ponto de vista sociológico — aponta a criadora do Roubaram Meu Rim.
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Histórias em movimento
Um dos pontos que transforma este tipo de consumo em sucesso é que as pessoas podem realizar outras atividades enquanto escutam os crimes reais sendo narrados. Este foi o caso de Stefanie Zorub, que começou a buscar podcasts de true crime para ouvir durante o trabalho, mas só achava produções norte-americanas. Assim, ela decidiu criar o dela, o Café com Crime, em 2018 — 75% dos ouvintes do programa são mulheres, corroborando o que destacou Michele.
De acordo com Stefanie, mergulhar em histórias pesadas acabou fazendo com que ela criasse uma certa resistência para não se "abalar tanto", mas mesmo assim, ela não deixa de levar sensibilidade e delicadeza para contar cada caso. E esse fascínio dela por crimes, que no início de seu projeto fez ela ser taxada de "doida", hoje é compartilhado por uma leva de seguidores. Segundo a criadora de conteúdo, em conversa com os ouvintes que são apoiadores de seu podcast, há pelo menos duas categorias que buscam as produções de true crime:
— A primeira é de pessoas que querem entender a psicologia dos assassinos. De entender como que uma pessoa é capaz de cruzar todos os limites, todas as barreiras tidas por nós como normais, e cometer um ato tão cruel contra outra pessoa — explica. — O outro lado é de quem escuta como uma forma de defesa, vamos dizer assim. Primeiro, porque a maioria desse público é feminina, que infelizmente se sente ameaçada no mundo que a gente vive hoje.
O trio entrevistado pela reportagem entende que os podcasts de true crime são, também, formas de entretenimento. Porém, a questão da responsabilidade ao contar essas histórias foi um dos pontos principais citados pelos criadores de conteúdo. A sensibilidade, a vontade de ajudar a dar luz a estes casos e, principalmente, de evitar que eles se repitam foram destacados por todos. Ou seja, é escutar o que diz o passado para criar um futuro menos assustador, que não precise ser contado em podcasts criminais.
— Em casos não resolvidos, como o do escoteiro Marco Aurélio, a família faz de tudo para manter o caso vivo e na mídia. O pai do Marco Aurélio, o Ivo, tem esperança que o filho vai ser encontrado, finalmente saber o que aconteceu, dando fechamento a essa história. Quando se bota essa história em um podcast, a gente está ajudando a propagar essa informação, mandando para o máximo de pessoas possível. E quanto mais pessoas souberem, mais podem, talvez, ter alguma informação para auxiliar nesse caso — complementa Stefanie.
Todos os podcasts citados neste texto estão disponíveis nas principais plataformas de áudio.