Por Márcio Soares
Jornalista, doutorando em Letras (UFRGS)
Com elementos do realismo fantástico, Incidente em Antares, último romance de Erico Verissimo, nasceu há meio século. Depois, o escritor ainda produziu a autobiografia Solo de Clarineta, deixando mais de 250 páginas revisadas antes de sua partida.
O derradeiro clássico inclui informações, pesquisas etnográficas e notícias que explicam o contexto de comunismo versus fascismo, discutido e vivenciado em outros momentos da história. Por meio de uma combinação de alegoria e abordagem política, escrita pós-golpe de 1964, a narrativa de 1971 dialoga com os temas atuais, sobretudo o do negacionismo da ciência por parte da população, além do caos político que transfigurava o Brasil, inclusive geopoliticamente. Desponta como exemplar contrário do regionalismo de O Tempo e o Vento, fundando um novo código literário daquele que foi um dos mais valorizados autores brasileiros.
A publicação apresenta uma estrutura ousada em formato épico. É formada por duas partes que dialogam entre si. A primeira, intitulada Antares, narra satiricamente a ressurreição de sete mortos à cidade homônima, ainda no século 19. Conforme Erico, apesar de não aparecer nos mapas, o município se encontra à margem esquerda do Rio Uruguai. Em um cenário sulista, defuntos utilizam o coreto da localidade como palanque e ali se encontram diariamente para fazer suas bombásticas declarações.
A mistura de fatos reais e irreais, a partir de uma pesquisa acadêmica sobre a localidade desacreditada, enriquece a trama. Por trás das denúncias dos cadáveres e da comicidade da situação, há um contexto político envolvendo corrupção do governo e da polícia locais. Convenientemente, os moradores de Antares não reconhecem certos fatos, como a existência de favelas e o machismo.
Com alta coragem experimental, Erico emenda uma segunda parte, alegórica e irônica, intitulada O Incidente. Nesse trecho, a temática política é abordada de maneira aberta e direta – em plena ditadura militar. Ganha destaque a figura de Tibério Vacariano, que possui distinta capacidade de antecipação das ações que envolvem personagens do governo nacional. O tempo vai se passando, e os rivais políticos que assim se estabeleceram desde as décadas passadas ora aliam-se, ora afastam-se, favorecendo de maneira ilícita seus candidatos durante as eleições.
Outro personagem merecedor de destaque é o padre Pedro Paulo, jovem e idealista, que não se curva aos poderosos do lugar, nem mesmo ao Padre Gerôncio, seu colega de batina, mais velho e conservador. Pedro Paulo está sempre disponível para dizer as verdades contundentes que o narrador deseja que cheguem ao leitor. Como em um trecho em que não se intimida em contrariar o juiz local, a propósito da decisão dos coveiros em greve de não sepultar os mortos da cidade. Para ele, era estranho “tanto respeito pelos mortos e tão pouco pelos vivos”.
Durante a leitura, fica fácil associar os personagens aos atores da minissérie adaptada do livro e exibida pela TV Globo em 1994, especialmente nomes como Fernanda Montenegro, que interpretou Quitéria Campolargo, a matriarca da cidade, e Gianfrancesco Guarnieri, como o inesquecível Pudim de Cachaça.
Como os personagens principais eram mortos-vivos, a produção contou com apurado trabalho de maquiagem e ajuda de efeitos especiais. O personagem de Guarnieri, por exemplo, é submetido a uma necropsia – seu corpo estava mal costurado. Numa cena pitoresca, ele começava a beber e o líquido vazava pela barriga. O efeito foi garantido por uma prótese acoplada ao abdômen do ator, com uma bomba que fazia jorrar água enquanto ele bebia. Há uma versão da série em longa-metragem (são duas horas que condensam os 12 episódios originais) disponível para assinantes do Globoplay.
De forma geral, pode-se concluir que a sociedade brasileira está representada em Incidente em Antares. As ações dos líderes locais, de um autoritarismo que se mostra incompatível com as conquistas da democracia, viabilizam a atemporalidade da obra, permitindo refletir sobre a falsa liberdade dos brasileiros. Pode-se dizer, inclusive, que, juntamente a O Senhor Embaixador (1965) e O Prisioneiro (1967), Incidente em Antares revela as convicções políticas de Erico Verissimo – nitidamente configuradas na sua literatura.