O escritor Paulo Coelho revelou, nesta quarta-feira (23), que sabia sobre a possibilidade de Raul Seixas tê-lo entregado para os militares durante a ditadura. "Fiquei quieto por 45 anos. Achei que levava segredo para o túmulo", escreveu no Twitter.
A história, que estava oculta até agora, veio à tona no livro Raul Seixas: Não Diga que a Canção Está Perdida, do jornalista Jotabê Medeiros, com lançamento previsto para o próximo dia 1º de novembro.
O caso, segundo a obra, aconteceu em maio de 1974, quando Raul e Coelho desfrutavam do sucesso de Krig-ha, Bandolo!, disco lançado no ano anterior e que já tinha mais de 100 mil cópias vendidas.
Segundo Medeiros, Raul havia sido chamado para dar um depoimento no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) da ditadura militar, e ligou para o amigo para acompanhá-lo e ajudá-lo a dar esclarecimentos sobre as músicas que haviam feito em parceria.
Paulo Coelho não sabia, mas essa não era a primeira vez naqueles dias que Raul ia ao prédio. No desafio de investigar fatos da vida de seu retratado, Medeiros acabou levantando a hipótese de o escritor ter sido delatado pelo melhor amigo a partir de um documento obtido no Arquivo Público do Rio de Janeiro.
"Comparei as datas e vi que, entre o primeiro depoimento de Raul ao Dops e o segundo depoimento, no qual ele levou Paulo Coelho, demorou pouquíssimo tempo", diz Medeiros.
No livro, Medeiros conta que Raul entrou na sede do Dops, permaneceu por meia hora e, ao retornar, tentou passar uma mensagem cifrada a Paulo, que o aguardava. Sem entender o recado, Paulo rumou à sua vez no interrogatório, permeado por perguntas a respeito do livreto que acompanhava o disco Krig-ha, Bandolo!. Depois disso, a polícia foi até o apartamento do escritor e prendeu sua namorada, Adalgisa Rios.
Quando foi liberado no dia seguinte, Coelho pegou um táxi com Raul, mas foi novamente capturado e levado para um lugar desconhecido. O autor de O Alquimista passou por sessões de tortura por duas semanas.
"Raul evitou Paulo durante um ano depois do acontecido", escreve Medeiros na biografia. "Paulo não tinha convicção das coisas, não pensava nisso, estava amedrontado, como talvez esteja até hoje", completa o autor.
O escritor Fernando Morais, autor de O Mago (2008), biografia de Paulo Coelho, também teve acesso ao documento do Arquivo Público do Rio. No entanto, ele acredita que alguém delatou Coelho à polícia, mas não tem certeza de que tenha sido Raul.
— O que me chamou atenção foi saber que o temido e superinformado Doi-Codi imaginava que Paulo fosse militante do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), sendo que ele nunca foi filiado a nenhum grupo armado que lutava contra a ditadura. É possível que ele sequer soubesse o que era o PCBR — disse Morais em entrevista à Folha.
O próprio Coelho teve acesso ao documento, mas os papéis oficiais não são conclusivos. O texto diz apenas que, "por intermédio do referido cantor" — no caso, Raul —, seria possível chegar até Paulo e sua namorada, Adalgisa.
Medeiros acredita que Paulo Coelho "não tem a menor dúvida , hoje, após ver o documento, que Raul o entregou", escreve ele na biografia.
Questionado se confirma a hipótese levantada pelo biógrafo, Paulo Coelho escreveu no Twitter: "Não confirmei e não confirmo nada. Apenas vi o documento e me senti abandonado na época. Por isso, não quis dar entrevista à Folha", disse.
A amizade entre os dois ficou estremecida após a tortura de Paulo Coelho, mas eles retomariam contato. Nos anos seguintes, Raul lançou grandes discos, como Gita (1975), Novo Aeon (1976) e Há Dez Mil Anos Atrás (1978).
As colaborações entre os dois foram rareando, e Paulo começou a trabalhar com diferentes cantores, como Rita Lee. Mas o que os afastou de vez foi a entrada de ambos para a seita do sacerdote Marcelo Motta, inspirada nas ideias do ocultista britânico Aleister Crowley. Juntos, compuseram, por exemplo, a muito conhecida Tente Outra Vez (1975).
"O conflito começou quando Paulo abandonou a seita à qual aderiram juntos", escreve Medeiros. "Paulo crê que Raul mergulhou fundo demais naquele ideário e passaram a se estranhar. Paulo não tinha mais paciência para os jogos de doutrinação da seita. Raul, como era mais hábil e maleável, adequava-se a ela."
O último encontro deles, após um pedido feito pelo produtor e amigo Roberto Menescal a Paulo Coelho, teria acontecido num hotel na divisa de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Coelho não queria encontrar Raul em São Paulo, e Raul não queria ir ao Rio. A ideia é que eles fariam novas músicas juntos, mas depois de cinco dias esperando o cantor — que estava trancado dentro de um quarto do hotel —, Coelho acabou desistindo da ideia.
— Convivi cerca de quatro anos com Paulo Coelho para escrever sua biografia — diz Fernando Morais. — Em nenhum momento percebi que ele alimentasse a mais remota suspeita de que Raul tenha sido o responsável por sua prisão.
Para Jotabê Medeiros, Paulo Coelho tentou falar do caso em diversas ocasiões. "No filme sobre a vida dele, ele se ressente de Raul não tê-lo procurado no tempo em que ficou cativo e mesmo depois de ser solto."
O jornalista também cita um artigo do escritor sobre o abuso que sofreu na ditadura, publicado neste ano pelo jornal The Washington Post. Ele lembra um trecho em que Coelho diz que "procura o cantor", falando de quando foi liberado pela polícia.
No ano em que se completam três décadas da morte de Raul Seixas, a obra de Medeiros é uma entre muitas que se propõem a celebrar a memória do roqueiro. O livro Raul Seixas: Por Trás das Canções, do jornalista Carlos Minuano, acaba de ser lançado, e se concentra mais nas histórias das músicas do baiano.
Ainda que o legado de Raulzito seja inquestionável, a relação tão celebrada dele com Paulo Coelho ganha novas nuances. O escritor diz que as chagas já foram cicatrizadas, sinal de que pode já ter perdoado o antigo parceiro. De certa forma, as revelações também deixam dúvida sobre os caminhos que a dupla poderia ter seguido, caso a relação com a ditadura tivesse sido outra.
"Paulo e Raul produziram algumas das canções mais poderosas, do ponto de vista da ressonância cultural, do nosso tempo", afirma Medeiros. "Separados, somente Raul mantinha a fleuma. Paulo não tinha a credibilidade do cantor, a voz, a autoridade. Foi ganhando outro tipo de autoridade ao longo da vida. Juntos, eram uma força da natureza".
Procurada pela reportagem de GaúchaZH, Vivi Seixas, uma das três filhas de Raul, não quis se pronunciar sobre o assunto e informou que nenhum familiar irá comentar o caso.