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Certa manhã, Luiza Lian acordou de sonhos intranquilos. Mas, diferentemente do personagem de Kafka em A Metamorfose, não tinha virado uma barata indolente. Pelo contrário: pegou toda a inquietude que lhe tirava o sono e gravou Oyá Tempo, disco/performance/manisfesto que agora tira o meu sono.
É preciso entender, primeiro, que Oyá Tempo não se equilibra nos alicerces convencionais da indústria musical. Seu formato de álbum serve, antes de tudo, como tela para as angustias que dominam a poética de Luiza, cantora paulistana e artista visual que integrou a banda de jazz Noite Torta e lançou seu primeiro trabalho solo em 2015.
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– A intenção era não chegar a lugar nenhum – explica Luiza. – Comecei a trabalhar e estava achando tudo muito esquisito, na verdade (risos), porque não tinha ideia de gravar um novo disco, mas as coisas foram acontecendo. Foi entrando poesia, as bases foram sendo criadas, mais gente apareceu, e de repente tínhamos um EP e, então, um álbum completo...
Essa falta de rumo rendeu um trabalho multimídia conjunto que gira em três eixos distintos, mas que se completam: um curta-metragem (da produtora independente Diaba e direção de Camila Maluhy e Octávio Tavares), um site (criado pelo artista gráfico Dedos) e o próprio disco (produzido por Charles Tixier). Juntos, entregam as reflexões de Luiza sobre o efêmero das relações em tempos de hiperconetividade virtual, usando como trilha de fundo uma costura de bases eletrônicas, cantigas para orixás, elementos de funk, jazz, soul e groove.
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– O tempo é algo muito mutante, e esse registro que se faz de si mesmo é meio fascista, porque desumaniza. Criamos personagens em uma rede e então nos mutilamos nesses registros em opiniões desumanizas. E aí, de repente, você odeia alguém por uma linha de opinião, entende? – comenta Luiza.
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Como disco, Oyá Tempo segue na linha de Cortes Curtos, de Kiko Dinucci, o que significa que faz mais sentido se ouvido na sequência e de uma só vez. Não que Luiza se preocupe em fazer sentido, o que ela parece querer é fazer sentir – e a maior parte do sentimento é de fascinação entremeado por angústia, como tatear no escuro guiado de quando em quando por uma luz estroboscópica, oferecendo nada além de fragmentos.
Não há caminhos seguros ou respostas em Oyá Tempo, apenas outros pequenos caminhos a seguir por conta e risco do ouvinte.
LANÇAMENTOS
BABY BUDAS NO JARDIM DA INFÂNCIA
Baby Budas
Os anos 1960 não morrem tão cedo. Pelo menos no que depender de Henrique Bordini, Henrique Cardoni, Bruno Ruffier e Humberto Mohr, que chegam agora às plataformas digitais com seu disco de estreia. Mais do que render homenagem à década que refinou o rock, o quarteto parece realmente se divertir no rolê – coisa que algumas bandas parecem ter se esquecido, mas vamos em frente. Com produção de Pedro Petracco, a bolachinha tem recheio duplo: de um lado, Jovem Guarda, rockabilly, iê-iê-iê, do outro, psicodelia sessentista e experimentalismo. Parecem dois discos em um – e eu gostei mais da segunda parte. Pardais é o ponto alto do disco, uma interessantíssima incursão pelo rock rural psicodélico, enquanto Aloha Marciano e Love Divine funcionam como uma faixa só, lisergia da pesada feita para acenar para homenzinhos verdes de Marte. Carol, uma fantasia sobre mudança de gênero, também é legal. Rock, 180 Selo Fonográfico, 8 faixas, disponível para audição nos serviços de streaming.
CHEAPSKATE
Second Hand Sublime
A Second Hand Sublime poderia muito bem se encaixar nas chamadas bandas de tributo – o amor pelos ídolos está até no nome. Mas a gurizada se esforça para ir além e mostrar um trabalho com personalidade e, principalmente, qualidade. Em seu disco de estreia, Bruno Nerva (voz e guitarra), Cristiano Fava (bateria), Vini Mariath (baixo) e Fabiano Fava (trompete e voz) não inventam e apresentam um ska bem produzido, ora puxando mais para o reggae (Blue Reverie), ora pesando a mão no hardcore (Marshall White). Blue Dub é exatamente o que o nome diz, um dub esfumaçado, dos bons. Destaque para Little Bird, um reggae com pegada mais melódica e excelente trabalho de guitarra, mostrando que banda tem competência para crescer musicalmente e arriscar voos mais altos. Ska, Loop Discos, 7 faixas, disponível para audição nos serviços de streaming.
BANZO
Minimalista
Banzo era como os escravos descreviam o sentimento de melancolia em relação a terra natal. O banzo de Thales Silva, o Minimalista, parece estar mais ligado a saudade de uma música brasileira mais humana, quente, sensual – sexual, até. Em seu novo disco, o compositor e instrumentista mineiro balança entre o explícito e o lírico para falar dos prazeres da carne e do coração, sem deixar claro onde começa um e onde termina o outro. Não que isso seja necessário, é possível morrer de amor (Grito Rouco, O Peso) e arder de desejo (Fogo no Rabo, Boca Vermelha) ao mesmo tempo, seja você homem (Maçã), seja você mulher (Pode me Pegar). Com Banzo, Thales aponta para a Tropicália, no sentido de sugerir que talvez seja hora de voltarmos a olhar para o que o Brasil tem de melhor e misturar tudo na maior sem vergonhice – do tecnobrega de Branquinha ao baião eletrônico de Banzo. Um tesão. MPB, Quente, 10 faixas, disponível para audição nos serviços de streaming.