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No final do ano passado, Laura Marling anunciou que seu próximo disco teria um viés feminista. Eu achei ótimo e, como imaginei, Semper Femina é um excelente disco, à altura das resenhas elogiosas e das alta cotações que vem recebendo. Só não imaginava que ele pudesse dizer tanto sobre mim.
Semper Femina é um disco sobre a mulher. Ou sobre mulheres. Seu título foi tirado de um trecho do poema épico Eneida, do poeta romano Virgílio, onde escreveu "varium et mutabile semper femina" (a mulher é sempre algo inconstante e mutável, numa tradução livre).
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Para Laura, Virgílio tinha razão. Em Semper Femina, a cantora e compositora britânica se debruça sobre as nuances que compõe o universo feminino. Sua voz delicada, mas poderosa, emerge entre timbres duros e melancólicos (embora nunca tristes) para desenhar personagens que tratam de amor (Wild Fire), autoconfiança (The Valley), sororidade (Next Time), relações conturbadas (Don't Pass Me By), crescimento (Always This Way) e desejo (Nouel).
Nada em Semper Femina, no entanto, é gratuito. Laura não está ali para dar lições, estabelecer parâmetros ou ditar regras sobre o que é ou como ser mulher. Suas letras destacam aspectos, divagam a respeito de emoções e momentos, fluem através de um véu elusivo para entregar pouco mais do que pistas. Para mim, um homem que cresceu ouvindo rock, foi um choque para o qual eu não estava preparado.
No rock, vocês sabem, um personagem feminino só existe porque porque um homem o está observando. A mulher, no rock, é produto do ponto de vista masculino. Então, quando me deparo com as mulheres de Semper Femina, que existem pelo olhar de uma outra mulher, eu preciso ouvir mais de uma vez até conseguir afastar alguns passos e vislumbrar um pequeno pedaço do quadro que Laura pintou. Mas existe muito mais ali, que vou descobrindo a cada nova audição.
Semper Femina é um álbum de uma mulher sobre mulheres, mas que nós, homens, talvez precisemos ouvir mais do que elas.
LANÇAMENTOS
A SAGA DO CAVACO PROFANO
Machete Bomb
Se o Planet Hemp tivesse nascido nos anos 2000 ele seria o Machete Bomb. Em seu segundo disco, o quinteto de Curitiba tira um pouco o pé do samba para investir em peso e experimentação. O cavaco ainda está lá, claro, mas mais discreto – nas entrelinhas de Juntos e de Fatcap, por exemplo. Destacam-se agora as guitarras distorcidas (casos de Tiro e Queda e O Contra-ataque) e o excelente vocal de Vitor Salmazo. As letras concentram-se em expor questões atuais e urgentes, de repressão policial (Giroflex) a corrupção (Temporada de Caça) e tensões sociais (Fatcap). Com produção esmerada e muito bom gosto, o disco ressalta o talento de uma das bandas mais interessantes e versáteis do momento. Ao vivo, deve ser uma paulada. Pop, independente, 7 faixas, disponível para audição nos serviços de streaming.
BRITPOA
Tielo
Se o nome do disco não for suficiente, o nome da faixa de estreia não deixa dúvida quanto as intenções de Tielo: Rock Bretão. Em seu primeiro álbum, o rapaz foi se inspirar nos deuses da música pop britânica _ mais especificamente entre Beatles e os irmãos Gallagher. BritPoa varia entre baladas (Eu Não Tenho Medo, Algodão Doce) e faixas mais pesadas (O que eu Quero pra Mim), todas girando em torno das referências de Tielo. É um resgate interessante de um momento que já teve mais destaque na cena musical de Porto Alegre e ainda hoje mantém sua cota de viúvas, mas seria bacana ver o que ele poderia fazer para além. Rock, Marquise 51, 11 faixas, disponível para audição nos serviços de streaming a partir desta sexta-feira.
SIMILARES
Formada por Thales Silveira (voz e guitarra base), Eduardo Vinhas (guitarra solo), Michel Domenech (baixo e backings) e Thales ''Teko'' Lima (bateria), a Similares chega ao seu primeiro disco três anos depois do interessante EP Finalmente não Sou Alguém. A inspiração da gurizada é aquele rock oldschool com verniz moderninho, de orientação pós-grunge, bom uso de pedais de distorções e canções que grudam na primeira ouvida. Dá para ouvir um Queens of the Stone Age em Agnes e Saudades (Dos Dias Que Nem Vivi), por exemplo, e dedilhados psicodélicos em Satélites e Meus Poemas Estão à Venda – esta, minha faixa preferida do disco. Destaque também para a última faixa, Desatados os Nós, epopeia lisérgica das mais bonitas e que, na minha opinião, deveria orientar a vida da banda. A névoa púrpura não deve deixar de pairar sobre os Similares. Rock, 180 Selo Fonográfico, 10 faixas, disponível para a audição nos serviços de streaming.