Realiza-se neste sábado (15/8) e domingo (16/8), em Santo Antônio da Patrulha, a 29ª Moenda da Canção, um dos poucos festivais gaúchos nunca interrompidos e que se mantém bem. Acompanho os festivais desde o início, como repórter de ZH registrei o auge do movimento, até mais ou menos o final dos anos 1980. Depois as coisas começaram a ficar meio estranhas, com queda geral na qualidade. Além de constatar isso ao integrar comissões de triagem, sigo observando em várias listas de selecionadas que muitas músicas se repetem em festivais diferentes. Em vez de buscar uma canção melhor, o autor reaposta na própria ruindade.
No tempo das vacas gordas, mais de 70 festivais de música regional espalhavam-se pelo Estado. Hoje, o calendário do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore anota quase 50. Mas no máximo uns 10 têm alguma (pouca) relevância. Nestes, o volume de músicas inscritas oscila entre 300 e 500, dependendo da quantidade que cada autor pode inscrever - há festivais que aceitam três, outros recebem seis e até mais. O número de três, predominante até os anos 1990, foi estabelecido pela pioneira Califórnia da Canção Nativa, criada em 1971 em Uruguaiana e que em dezembro deverá realizar a 39ª edição.
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Originalmente, os festivais selecionavam 36 músicas, delas saindo as 12 finalistas para formar o disco - o LP tinha em geral 12 faixas. Mais tarde (virada dos 1990 para os 2000), dois fatores levaram os dirigentes a reduzir para 24 (e até 18) as concorrentes. Um econômico: poupar o dinheiro da ajuda de custo aos autores, pois a dificuldade na obtenção de patrocínio virou regra. O outro, artístico: a qualidade havia despencado. Tirar 36 músicas boas ou mesmo razoáveis de 400 inscritas passou a ser um problema. Os dois fatores prejudicaram em muito a própria Califórnia, outrora gigante.
Na verdade, o fenômeno da queda na qualidade já havia sido detectado antes. Ligava-se ao grande número de festivais para os quais os artistas por eles revelados estavam mandando músicas, e ao interesse que seu sucesso despertou nos novos, aumentando em muito os concorrentes sem experiência ou livre-atiradores em busca de evidência - havia grande cobertura da imprensa. O júri de triagem da Califórnia de 1981, do qual fui um dos integrantes (com Apparício Silva Rillo, Luiz Carlos Borges, Mauro Aymone Lopes e Diogo Madruga), redigiu a chamada "Carta de Uruguaiana", que provocou polêmica por alguns a considerarem ingerência na liberdade criativa.
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Como registra Colmar Duarte no livro Califórnia da Canção Nativa ­- Marco de Mudanças na Cultura Gaúcha (Editora Movimento, 2001), a "Carta" chamava a atenção para o uso repetitivo de clichês e frases feitas, alertava para uma certa compulsão ao passado e à infância na maioria dos temas e criticava a falta de enfoque na realidade contemporânea do Rio Grande do Sul. Vale lembrar que a vencedora daquele ano foi a definitiva Desgarrados, de Mário Barbará e Sergio Napp, que não se encaixava em nenhuma dessas observações - como tantos outros clássicos deixados pelo festival.
Se com o tempo os principais compositores e intérpretes, tendo já carreiras consolidadas, se afastaram, e se poucos novos se destacaram a partir dos anos 1990, imagine-se a que ponto chegou a questão da qualidade. Fazer triagem se tornou quase um teste de resistência à frustração: o sujeito ouve 500 músicas para extrair 10 fracas, 10 mais ou menos, três boazinhas e uma boa, raramente alguma muito boa. Ótima, nem pensar. Como eu disse, há várias canções ruins que circulam de festival em festival apostando em descuido ou despreparo das comissões de triagem. E às vezes conseguem.
A baixa qualidade da imensa maioria das músicas inscritas atualmente chega a ser desconcertante. Letras tortas, chavões, imagens pueris ou de falso folclore, oba-oba "bagual", passadismo, melodias canhestras que parecem plágios umas das outras, e muito gritedo como se fosse um "estilo". A impressão que se tem é que os novos/velhos compositores não ouvem boa música. Ou não fariam o que fazem. E aí está o pior de tudo: a falta de autocrítica. O que, aliás, em parte significativa do Rio Grande de bombachas, não é privilégio deles.
ANTENA
Náufragos Urbanos, de Martim César, Ro Bjerk e Ricardo Fragoso - Raríssimos letristas gaúchos navegam com naturalidade entre a música nativista e a MPB. Lembro dois grandes: Apparício Silva Rillo e Sergio Napp. Também poeta e escritor com cinco livros, e prêmios em muitos festivais, Martim César é um deles. Este sétimo álbum em 20 anos de carreira, segundo com temática urbana, comprova o talento para versos universais e ritmos como o samba, predominante no CD. São oito parcerias com Ricardo Fragoso e cinco com Paulo Timm, ambos da Zona Sul do Estado - como Martim, que é de Jaguarão. Ao lado da ótima cantora Ro Bjerk e de músicos da competência de Aluísio Rockembach (acordeão) e Daniel Zanotelli (sax), Fragoso (voz, violão, arranjos) afirma o caráter discursivo, incisivo, até político, das palavras de Martim e seu parentesco com Dylan, Vandré, Belchior. Mas tudo com sotaque gaúcho. Um disco surpreendente. Independente, R$ 20, contato em martices@bol.com.br
Canção e Silêncio, de Zé Manoel - Posso apostar que este segundo disco do cantor, compositor e pianista pernambucano vai aparecer em várias listas de melhores do ano. Produzido pelos cobras Carlos Eduardo Miranda e Kassin, é um trabalho que afirma Zé Manoel entre as revelações da música brasileira. Na contramão de qualquer modismo, suas composições evocam uma MPB sessentista que passa por Caymmi, Vinicius, Edu Lobo, e de um salto chega a Wisnik, hoje, mais seu DNA nordestino. Nas águas está a temática central, do Rio São Francisco, em cujas margens se criou, ao mar de Recife, onde vive. Entre samba-de-roda, canção caymmiana, bossa nova, valsinha, em interpretações suaves, de ares quase melancólicos, Zé Manoel sublinha sua personalidade - sempre ao piano, com o qual convive desde os oito anos (hoje tem 34). Sem falar que com ele estão músicos como Tutty Moreno e Letieres Leite. E que um dos parceiros é o gaúcho Sergio Napp. Natura Musical, R$ 25
Remanso, de Levi Ramiro - Quem for ao Teatro do Sesc no próximo dia 26 saboreará a arte de um dos principais nomes da viola caipira paulista, que chega a Porto Alegre em dupla com Paulo Freire no projeto Sonora Brasil. Nascido na pequenina Uru, hoje radicado em Pirajuí (25 mil habitantes), Levi Ramiro celebra a simplicidade da vida interiorana. Violeiro desde 1995, artesão do instrumento, tornou-se um líder no meio, com oito discos lançados. Neste Remanso, apresenta novas composições no som peculiar da viola dinâmica, criada pelo luthier Luciano Queiroz, e da viola cabaça (para os gaúchos, porongo). Mas a coisa não é tão simples: no disco, dez músicos ajudam Levi a levar adiante sua bela sonoridade caipira, entre eles Edu Guimarães na sanfona e Esdras Rodrigues nas rabecas. Uma das 13 músicas, Madrugadas Solitas, é assinada pelo gaúcho Luiz Kur. Independente, R$ 25, contato em www.leviramiro.com.br
Coluna
Juarez Fonseca: qualidade das músicas dos festivais gaúchos nunca foi tão baixa
O colunista escreve quinzenalmente no 2º Caderno
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