São tantas as coincidências entre os novos discos da baiana Virgínia Rodrigues e da paulistana Fabiana Cozza, ambas descendentes de angolanos, que se poderia pensar que foram combinados. Os dois têm como centro a negritude, a cultura afro-brasileira e sua fundação na Bahia. Composições dos baianos Tiganá Santana e Roberto Mendes estão em ambos, sendo que Tiganá é fundamental no álbum de Virgínia, com cinco músicas, e Mendes idem no de Fabiana. Os dois visitam ritmos afro-cubanos e seus arranjos têm como base violões e percussão variada. Mama Kalunga é o quinto disco de Virgínia, 18 anos de carreira, mais conhecida na Europa do que no Brasil; Partir é o quinto de Fabiana, 18 também, conhecida basicamente em São Paulo e que neste mês faz nova turnê europeia. É bom ouvi-los juntos, mais para desfrutá-los do que para compará-los.
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Ao ouvir Virgínia, críticos como o do jornal The New York Times têm qualificado sua voz de meio-soprano como "celestial". Nascida em uma favela de Salvador, desde criança procurava música erudita no rádio. Foi manicure e doméstica, cantou em corais de igrejas e no Coro de Câmara da Bahia até ser "descoberta" por Caetano Veloso em um ensaio do grupo de teatro do Olodum. Em vários momentos do disco fiquei arrepiado com a intensidade de seu canto, ao mesmo tempo sagrado e profano. "Estou sempre cantando as coisas do meu povo e, desta vez, quis ir mais fundo na questão", disse em uma entrevista. Na primeira faixa, Ao Senhor do Fogo Azul (Gilson Nascimento), cantada a capela, ela já antecipa o que virá, em ritmos como samba, samba-de-roda, ijexá e em canções como a introspectiva Nos Horizontes do Mundo (Paulinho da Viola).
O clássico Vá Cuidar de Sua Vida (Geraldo Filme) fala de preconceito, assim como Luandê (Ederaldo Gentil). Teus Olhos em Mim (Roberto Mendes/Nizaldo Costa) e seu ar de modinha é um comovente tema de amor. Com a peruana Susana Baca, Virgínia divide um cântico tradicional afro-cubano. Todas de Tiganá (coprodutor do CD, violonista de formação erudita, filósofo), Mukongo, Monami e Yaya Zumba/Saluba têm letras em idiomas africanos. Também dele, Mama Kalunga ("Água-mãe") reúne todos os instrumentistas - Bernardo Bosisio (violão), Iura Ranevsky (cello), Sebastian Notini e Marco Lobo (percussões) - que ajudam a cantora a fazer um trabalho impactante. Em versões bem distintas, Mama Kalunga e Teus Olhos em Mim são as músicas presentes nos dois discos.
Desde a infância fã de Clara Nunes, Fabiana Cozza entrou na música pela porta do samba. O título de seu CD, Partir, saiu da canção Le Mali Chez La Carte Invisible, de Tiganá, sobre como o mundo "não vê" a África. No encarte, Maria Bethânia destaca sua voz "lisa e clara" e elogia o repertório. Todas as músicas são muito boas, mas me permito destacar Chicala, uma morna (ritmo angolano) do surpreendente João Cavalcanti (filho de Lenine), a jazzy É do Mar (da gaúcha Gisele De Santi), a salseada Borzeguita (Leandro Medina), o ijexá Orixás e o samba/samba-de-roda Seu Moço (ambas de Roberto Mendes e parceiros). Perfeito o trabalho dos músicos liderados por Swami Jr., com ele e Jurandir Santana nos violões, Marcelo Mariano no baixo, Douglas Alonso na bateria e Felipe Roseno na percussão. Outro álbum de exceção.
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ANTENA
As Ganhadeiras de Itapuã - Primeiro disco do já conhecido grupo folclórico baiano formado por cerca de 20 mulheres de várias idades, que estimulou no Nordeste o resgate das cantadeiras - e que acaba de ganhar o Prêmio da Música Brasileira de melhor álbum regional. Em atividade há 10 anos, As Ganhadeiras devem seu nome às mulheres da praia de Itapuã, em Salvador, que, no passado, reuniam-se para vender frutas, peixes e outros produtos, tendo com isso um ganho extra para a família - e cantavam para ajudar a passar o tempo, amenizando os dissabores das longas caminhadas e da vida. Ao contrário de outros grupos de cantorias em uníssono, apesar do encanto frequentemente tosco e desafinado, As Ganhadeiras são muito musicais, acompanhadas por bons músicos, produção cuidada e repertório cheio de ritmos baianos. O CD inclui canções do folclore, de integrantes do grupo, como o líder Amadeu Alves, e três clássicos: Conto de Areia, de Romildo e Toninho (sucesso de Clara Nunes), Rainha do Mar e O Mar, ambas de Caymmi. Participação especial de Margareth Menezes, produção de Alê Siqueira. Lançamento do selo de Guilherme Arantes, o Coaxo de Sapo, R$ 25
Rosil do Brasil, de Chico Salles - A comemoração pelo centenário do nascimento de Rosil Cavalcanti (20 de dezembro) começa com este disco de seu conterrâneo Chico Salles, forrozeiro e cordelista paraibano radicado no Rio de Janeiro desde a adolescência. Falecido em 1968, Rosil foi um dos mais populares autores nordestinos de meados do século 20, com uma trajetória ligada especialmente a Jackson do Pandeiro - mas gravado por Luiz Gonzaga e muitos outros. Radialista em Campina Grande, tinha no humor e em personagens típicos da região a fórmula para conquistar o público. Sua música mais perene, Sebastiana, voltou ao sucesso na voz de Gal Costa em plena Tropicália (veja abaixo) e, aqui, tem a sublinhá-la a voz de Chico César, um dos convidados do CD. Em outro sucesso, Coco do Norte, Salles faz dupla com Biliu de Campina. Em Forró de Zé Lagoa, o convidado é Silvério Pessoa. E assim vai, coco, baião e xote trazendo à tona parte da obra de Rosil e incentivando os ouvintes a dançar com A Festa do Milho, Cabo Tenório, Forró na Gafieira e Na Base da Chinela. Chico Salles é um cantor que convence não apenas pela voz como também pelo conhecimento de causa. Zeca Pagodiscos/Universal, R$ 22
Gal Costa - Quem nunca ouviu em vinil o primeiro disco solo de Gal Costa agora já pode fazê-lo. Está chegando às lojas, em LP, o antológico álbum de 1969 que fez da cantora a porta-voz estética da Tropicália, com as prisões e o exílio de Caetano e Gil. Trata-se de um clássico definitivo. Aqui estão, entre outras, as músicas Não Identificado, Saudosismo, Baby (todas de Caetano), Namorinho de Portão (Tom Zé), Divino Maravilhoso (Gil/Caetano), Se Você Pensa (Roberto/Erasmo), Que Pena (Jorge Ben) e... Sebastiana (Rosil Cavalcanti). Lançamento Polysom/Universal, R$ 80 (em média)
Coluna
Juarez Fonseca: vozes e sons da África brasileira
O colunista escreve quinzenalmente no 2º Caderno
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