A notícia da morte do Nico Fagundes me atropela e me pecha, triste e mágica, justo enquanto faço esta reflexão para um espaço dedicado ao sentir e pensar nosso Sul. Antes de saber que o silêncio tapou esse amigo, eu teria começado contando sobre quando, guri, conheci um estúdio de gravação.
Acreditei que, para que meu violão tivesse a voz de casa, ou das festas e dos bares e praças onde eu a qualquer pretexto o pelava de sua capa, como a um parelheiro cuidado que corria por gosto, o técnico não poderia aportar nenhum artifício - e soaria o Puro, a Verdade. O paradoxo que então aprendi sempre há de amadrinhar minha permanente construção de um conceito de arte.
Há que usar de artifícios em um estúdio, para alcançar o natural, porque não estão naquele cômodo isolado as condições vivas de um ambiente. Quintana rejeitou, eu sei, "padres, críticos e canudinhos de refresco"... Mas só intermediários podem recriar o que se nos represente puro; e essa arte, sim, tem artifícios. Da mesma maneira como é preciso ir até a fronteira, pôr-se diante dela e atravessá-la, para afirmar que ela não existe, só o intermediário pode abolir a si próprio: nenhum grande da literatura regional era representante direto, "natural", do mundo campeiro - mas, para além da marca pessoal, seu mérito sempre foi o de fazer-nos sentir bebendo da fonte.
Abre-se aí um espaço largo de questionamento e disputa: os possíveis profetas da cultura crioula o serão ou não, de acordo com sua capacidade de nos fazer sentir refrescados e saciados por uma água essencial que reconhecemos pelo cheiro - ou imaginamos, o que talvez seja o mesmo.
Para uma multidão, Nico Fagundes foi um desses profetas; um ponteiro entre eles. Agora, quando ele avança sobre a fronteira maior e a atravessa, como os antigos cruzadores de campo, e como eles a abole, com a altivez de quem passa a pertencer às duas bandas justamente por não reconhecer limite entre elas, alegra-me, ao escrever esta reflexão, sentir que ele também a perpassa.
* Músico, produtor e apresentador do programa "Cantos do Sul da Terra", na FM Cultura
Coluna
Pampianas: Nico
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