Em ação há quase 30 anos, o pelotense Carlos Badia dedicou boa parte deles à música para publicidade, em Porto Alegre. O grupo de jazz Delicatessen, do qual foi um dos fundadores em 2006 e com o qual gravou três ótimos discos, de certa forma é fruto desse trabalho, pois foi concebido praticamente dentro de uma agência de propaganda. Mas em 2012, em meio ao sucesso do premiado grupo, Badia decidiu "zerar" o velocímetro e acessar suas "memórias musicais que precisavam ganhar vida plena". Memórias mais com o sentido de acervo, de guardados, do que de lembranças. Deixando o Delicatessen, passou a vislumbrar o próprio horizonte e, depois de algumas experiências, o investimento na carreira solo se consolida com o lançamento do primeiro álbum, o duplo Zeros - um CD instrumental e um de canções. O esmero da produção aparece já na inédita concepção da capa-objeto, simultaneamente uma e duas.
Começo pelo disco instrumental, mais ligado à ideia recente que se tem de Badia e que, sim, é feito de jazz e samba-jazz (ou bossa nova). De cara, posso afirmar que sua guitarra e seu violão estão entre os melhores do gênero no Brasil, precisos, coloridos, com timbres bem definidos para uma sonoridade do tipo clássico. Ao lado dele, nos dois discos, três feras a mil: Matheus Kleber (piano, acordeão), Éverson Vargas (baixo) e Marquinhos Fê (bateria). O clima é quase sempre leve, alternando temas abertos, ensolarados, como em Carioca, e introspectivos, como em Lagoinha. Com as participações de Daniel Zanotelli (flauta) e Sandro Albert (guitarra solo), Subindo a Serra evoca uma noite romântica. A viajante (nove minutos) Pêndulo de Foucault e a densa Escher Song (marcada por piano e baixo) são momentos altos. A mais "diferente" é Zamba de Los Hermanos, que fecha um trabalho de nível internacional.
Badia foi o idealizador do POA Jazz Festival, realizado em outubro de 2014. O jazz faz parte do seu modo de ver a música e, entre sambas e algum pop, também está no disco de canções desde a primeira faixa, Mundo, onde brilha o convidado João Donato. Assim como essa, várias letras são reflexões sobre a passagem do tempo, casos de Filho e sua linda melodia saudando o mistério da paternidade; de O Velho, que tem uma levada rítmica meio cubana; da explícita e dramática O Tempo (com New no piano). Na sombria Sonhos de Bunker Hill, o violino de Hique Gomez convive com os personagens Arturo Bandini e Henry Chinaski. Só de voz e piano, Amigos é uma canção de ninar gente grande. Destaco ainda Artenauta, melodia circular, quase nervosa, com a voz de Vitor Ramil; e, únicas com outros letristas, o jazz antiguinho Alguém Mais (Ronald Augusto) e a crispada milonga Mal Acostumada (Carlos Saul Duque).
Uma canção de referência no arremate: Auto-Retrato, de Egberto Gismonti, com as presenças de Gastão Villeroy no baixo e Julio Falavigna na tabla. Em todos os casos, Badia acerta em cheio, trazendo novidades para a música do Sul.
Ritmos gaúchos, música universal
Ao contrário da música folclórica argentina, que sempre teve espaço para o gênero instrumental, no Rio Grande só o que se tinha eram (raros) discos de acordeão solo. Nos anos 1980, Renato Borghetti começou a mudar o panorama, inaugurando o formato de quarteto (com sopros!) e levando aos arranjos certos macetes jazzísticos. Mas demoraria um tempo ainda para a moderna música instrumental de raiz gaúcha alçar voo. Sem falar em Yamandu Costa, que está em outra dimensão, acho que depois de Borghetti o primeiro marco em inventividade foi o Quartchêto, cujo primeiro disco é de 2005. De lá para cá, evidenciaram-se, com CDs lançados e carreira própria, Marcello Caminha, Maurício Marques, Luciano Maia, Paulinho Cardoso, Samuca do Acordeon, Paulinho Fagundes, o Quinteto Canjerana. Agora, chegam ao primeiro disco dois compositores-instrumentistas que, apesar de jovens, já tocaram e seguem tocando com muita gente boa, e não apenas no âmbito da música regional, gênero que escolheram para marcar o início da carreira solo: Rafael Ferrari, com Bandolim Campeiro, e Matheus Kleber, com Congruências.
Rafael Ferrari
Porto-alegrense, 34 anos, Ferrari começou aos 20, quando passou a frequentar o ambiente do choro e a ter aulas com Luiz Machado, destacando-se como bandolinista. Depois de integrar o grupo Camerata Brasileira, com o qual gravou três CDs, voltou-se para a pesquisa da música gaúcha e criou um estilo que une a linguagem do choro aos ritmos regionais.
As 12 faixas do disco mesclam bandolim solo e em duos (com gaita, violão, violino etc.), passando por polca, chacarera, chamamé, milonga, zamba, vanerão. Seis composições são dele, as demais de Gilberto Monteiro (Pra Ti Guria, uma surpresa ao bandolim solo), Mauro Moraes, Luiz Carlos Borges, Yamandu, Antoninho Duarte e Borghetti, também um dos convidados, ao lado de Gabriel Selvage, Samuca do Acordeon, Hilton Vaccari e Ricardo Herz. Ferrari está desde 2014 radicado em São Paulo, de onde planeja levar sua música para o Brasil.
BANDOLIM CAMPEIRO
De Rafael Ferrari
Independente, R$ 25, à venda em facebook.com/bandolimcampeiro e pelo e-mail bandolimcampeiro@gmail.com.
Matheus Kleber
Nascido em Montenegro há 30 anos, Matheus vive a música desde os sete. Com formação acadêmica na UFRGS, domina acordeão e piano além de ser inspirado melodista e arranjador. Seu disco também é percorrido por várias formações, por exemplo acordeão/piano, flauta, oboé, violão, contrabaixo e quarteto de cordas ou acordeão, violino, clarinete, vibrafone, contrabaixo. Partindo de ritmos como zamba, milonga e chamamé, na confluência com o erudito, eu diria que ele faz música regional de câmara - mas também tem um vanerão bem dançante. Das 10 faixas assina seis. Entre as outras, uma única cantada, Teu Segredo (Nelson Coelho de Castro/Bebeto Alves) em duas versões, ambas com a bela voz de Mônica Tomasi. É um trabalho de exceção, dividido com instrumentistas como Marcello Caminha, Marcelo Piraino, Ângelo Primon, Rodrigo Alquati, Fábio Alves, Ianes Gil Coelho e Giovanni Berti.
CONGRUÊNCIAS
De Matheus Kleber
Independente, R$ 15 na loja Toca do Disco e R$ 35 (envio pelo correio por meio do site matheuskleber.com.br).
Coluna
Juarez Fonseca: todo o jazz de Carlos Badia
O colunista escreve quinzenalmente no 2º Caderno
GZH faz parte do The Trust Project