A lembrança mais antiga de Zindzi Mandela é a de estar sentada do lado de fora de uma delegacia de polícia de Pretória, África do Sul, em 1962, enquanto a mãe, Winnie, entregava o prato favorito do pai dela, Nelson Mandela, que estava preso lá dentro.
- Eu tinha 18 meses de idade, mas realmente consigo me lembrar daquele instante, sentada no carro, esperando minha mãe voltar. Eu devo ter percebido que havia algum tipo de trauma, e estava muito assustada. Ela estava demorando muito. -
Entrevistada antes do falecimento do pai na semana passada, Zindzi Mandela relatava essa lembrança enquanto tomava refrigerante de oxicoco atrás das colunas imponentes do elegante bar principal do Pierre Hotel, em Manhattan, e lembrava-se de mais de meio século atrás. - Eu não imaginava quando era uma menina em Soweto, nem quando era uma moça envolvida na luta, que um dia iria sair daquele lugar e passar minha vida em quartos como este - , ela contou.
A longa trajetória da vida de uma pessoa estava na cabeça de Zindzi Mandela porque, na noite anterior, outro filme sobre seu reverenciado pai, então com 95 anos, teve sua estreia no Alice Tully Hall, Nova York. E o filme - "Mandela: Long Walk to Freedom", baseado na autobiografia de Mandela - conta a história complicada e nem sempre edificante de sua vida, da infância em um vilarejo rural à lenta imersão na batalha contra o apartheid, a liderança do Congresso Nacional Africano (CNA), os 27 anos na prisão, sua ressurreição final e o triunfo.
Alguns dos filmes mais proeminentes sobre Nelson Mandela, como "Invictus", de Clint Eastwood, se concentraram em um episódio de sua vida, como Steven Spielberg fez com a aprovação da 13ª emenda à constituição norte-americana em "Lincoln". Porém, essa não foi a opção desta vez.
- Nós estávamos adaptando o livro dele e, portanto, era preciso ter a jornada inteira. Não dava para ficar escolhendo a dedo - , contou o diretor, Justin Chadwick.
Quem viveu esse período na África do Sul ou pelo menos parte dele, deve inevitavelmente assistir ao filme e comparar seu retrato com as próprias lembranças. Para Zindzi Mandela, trata-se de um grande desafio de drenagem pessoal e emocional com o qual ela continua lutando.
Embora existam trechos calmos explicando o complexo jogo de xadrez que Nelson Mandela jogou com P.W. Botha, F.W. de Klerk e outros líderes do apartheid, o núcleo do filme envolve os relacionamentos vacilantes com sua família.
O fato de Winnie Mandela, Zindzi e outros filhos de Mandela atuarem como "consultores históricos" oficiais se revelou mais um benefício do que um obstáculo, disse Chadwick, pois eles estavam tão dispostos quanto ele em retratar Nelson Mandela por completo, incluindo suas falhas.
- Ele é um ser humano; extraordinário, mas sem deixar de ser humano - , afirmou Zindzi Mandela
Não se trata exatamente de uma história contando toda a verdade. Nelson Mandela é mostrado - como se pode esperar de um filme baseado em sua própria versão dos eventos e supervisionado pelos membros da família - como um líder grandioso e inspirador que via mais claramente e lutava de forma mais resoluta do que ninguém mais.
Porém, permite-se a presença de sombras e contradições, começando pelos vários casos que Nelson Mandela teve quando moço e chegando ao seu desaparecimento na luta contra o apartheid que deixou a esposa e os filhos encalhados na mais profunda pobreza. Igualmente, Winnie também não é poupada, emergindo como uma esposa raivosa e afastada que apoia a vingança violenta enquanto o marido fala em reconciliação e paz.
- Temos o direito de não sermos hipócritas com Mandela, como costuma ser o caso nos filmes que narram biografias - , afirmou Idris Elba, ator britânico mais conhecido nos Estados Unidos pelos papéis na televisão em "A Escuta" e "Luther", que representa Nelson Mandela da mocidade até ele passar dos 70 anos.
Zindzi Mandela se acostumou a ver os atores retratarem seu pai na tela, tais como Sidney Poitier no filme para TV "Mandela e de Klerk" (1997) e Morgan Freeman em "Invictus" (2009), e até já apareceu como personagem. Contudo, ela contou que nunca um filme havia tentado capturar toda a trajetória do seu relacionamento distante e fraturado com seu pai e o rompimento doloroso do casamento dos pais.
Naquela época, em público Nelson Mandela era genial, ainda que um pouco ao estilo refinado e formal, mas sempre pronto a flertar com mocinhas nos elevadores da sede do CNA no centro de Johanesburgo. Porém, o personagem às vezes irritado e desesperado que surge aqui e ali na interpretação de Elba sempre era mantido nos bastidores, embora os auxiliares mais próximos por vezes descrevessem roupas excessivamente informais.
- Era preciso ser da família para ver esse lado de sua personalidade. Ah, ele sabia ficar irritado. E sempre dava para saber quando ele estava. Quando ele começava a cadenciar as palavras, você sabia que estava enrascada - , confessou Zindzi Mandela.
Chadwick, diretor britânico de Manchester que conta com os filmes intensos e realistas de Ken Loach como inspiração, trabalhou com o roteirista para traçar o caminho emocional em meio a esse emaranhado de incidentes e personalidades. Chadwick também estava determinado a tornar o filme o mais "imersível" possível.
- Nós queríamos nos sentir como se estivéssemos ali, entre as cenas. Tudo tinha de ser em 360º. -
Recriar as cidadezinhas de então se mostrou complicado. As ruas de Soweto que antes eram de cascalho agora são pavimentadas, as casas antes cercadas por cercas de correntes agora são circundadas por muros de concreto, e muitos têm carros brilhantes estacionados em frente, algo inédito naqueles tempos. Os cineastas sofreram para colocar as mãos nos veículos militares blindados ou nos furgões amarelos da Segurança Interna que aterrorizavam os povoados, pois ou foram destruídos ou estão em museus.
Um trecho comercial dilapidado de Kliptown, um dos bairros mais antigos de Soweto, teve de se passar por Sophiatown, o antigo bairro negro de Johanesburgo colocado abaixo pelas autoridades do apartheid no zelo em separar as raças.
Embora parte da filmagem tenha acontecido na ilha Robben, onde Mandela foi encarcerado, hoje em dia a prisão é um museu, assim os cineastas tiveram de construir um set para mostrar o pátio central da penitenciária e uma fileira de celas do jeito que seriam naquela época.
Zindzi Mandela viu o filme várias vezes, mas por enquanto somente com grandes plateias.
- Tenho de cuidar do jeito como reajo - , ela disse enquanto se preparava para sair em meio à tarde de Manhattan. - Eu preciso ver o filme sozinha. Somente então, creio eu, serei capaz de me permitir senti-lo por inteiro. -
Ela se tornou bastante amarga em relação ao fato de que seu pai deixou a família e desapareceu no submundo do CNA, terminando na cadeia. Mesmo depois de sua soltura, os deveres prementes o mantinham longe da família.
- Eu costumava brincar que quando ele estava preso, pelo menos eu tinha a garantia de duas visitas mensais. -
Ela também ficou com raiva quando ele saiu da prisão com uma mensagem de reconciliação em vez de triunfo militar como ela, a mãe e muitos ativistas locais desejavam.
- Eu simplesmente não conseguia acreditar que as pessoas podiam mudar de ideia da noite para o dia. -
Agora, ela raramente fala dos anos difíceis com seus filhos ou os muitos netos de Mandela, preocupada que isso possa de alguma forma trair a política de reconciliação do pai.
A filha também falou que era desejo do pai melhorar o suficiente para viajar até Qunu, pequeno vilarejo na província de Cabo Oriental onde foi criado. É lá que o pai gostaria de ter morrido.
- Intelectualmente, eu sei que ele está morrendo, mas emocionalmente, não estou pronta. -
Mandela
Nova cinebriografia de Nelson Mandela busca trazer lado humano do ex-presidente da África do Sul
O filme 'Mandela: Long Walk to Freedom' é baseado na autobiografia do líder-sul-africano
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