Autores de HQs costumam ser um pouco neuróticos e obsessivos, mas nessa fraternidade, Joe Sacco sempre foi visto como uma exceção.
Não há dúvidas de que Sacco, cujo novo livro, "The Great War", foi lançado em novembro, seja uma pessoa completamente bem ajustada. - De todos nós, ele é de longe o mais normal - , afirmou recentemente seu colega Art Spiegelman.
Sacco riu quando foi informado do comentário: - Não tenho certeza se isso é uma coisa boa ou ruim. -
Além disso, Sacco nem pode ser considerado um autor de HQs propriamente dito. "The Great War", assim como boa parte dos trabalhos pelos quais ele é mais conhecido, é uma obra de não ficção - a exemplo de "Palestina", uma compilação feita em 2001 após sua viagem ao Oriente Médio, pouco depois da primeira intifada, e "Área de Segurança - Gorazde", uma HQ publicada em 2000 e que relata o mês que o autor passou ao lado dos muçulmanos cercados na Bósnia.
Porém, ao contrário das obras anteriores, "The Great War" não pode nem ao menos ser considerado um livro, ao menos em sentido literal. Na verdade, trata-se de uma longa página dobrada, que fica com 7,3 metros de comprimento quando é totalmente aberta, e mostra em ordem mais ou menos cronológica o primeiro dia da Batalha de Somme, em 1916, quando 60.000 soldados britânicos morreram - as 24 horas mais sangrentas da história militar britânica.
"The Great War" começa com um quadro mostrando o comandante britânico, General Douglas Haig, andando em frente ao quartel general. Nos quadros seguintes armas e suprimentos são preparados e milhares de soldados do tamanho de polegares, desenhados com precisão quase microscópica, começam a se agrupar e andar em direção às trincheiras. A noite cai e a tinta escura lança sombras sobre os quadros até que as tropas entram em uma terra de ninguém, onde são massacradas pelas metralhadoras e pelos canhões alemães.
Soldados se dispersam e caem, deixando pequenos membros espalhados pela página, ou são trazidos de volta, empilhados como lenha em ambulâncias, e no último quadro do livro, soldados são enterrados em valas comuns, com os pequenos membros e rostos esmagados e contorcidos. Tudo isso acontece sem qualquer ruído, sem um único balão de diálogo ou exclamação indicando um efeito sonoro. Quando as explosões acontecem, elas se parecem com fogos de artifício silenciosos, ou com flores que desabrocham debaixo d'água.
Isso também é uma novidade para Sacco, cujos desenhos costumam trazer mais textos que a maioria das HQs, com quadrinhos que muitas vezes transbordam com os diálogos, que sempre são reais. Um de seus livros mais recentes se chama "Jornalismo", a carreira escolhida por Sacco na faculdade - depois de um breve período em que o jovem influenciado por R. Crumb desenhou tirinhas satíricas com nomes como Zachary Mindbiscuit e Oliver Limpdingle -, quando aprendeu a praticar, fazendo anotações meticulosas, tirando fotos, desenhando mapas e gravando entrevistas.
Sacco não aparece nenhuma vez em "The Great War", embora em seus outros livros ele geralmente apareça como uma criatura nariguda e de lábios grossos com aparência nerd, caminhando nervosamente na beira do quadro.
Na vida real, Sacco, que tem 53 anos e vive em Portland, no Oregon, é mais bonito e bem apessoado. Bebericando uma dose de Jameson no Old Town Bar, em Nova York, ele afirmou que o projeto surgiu em consequência de uma conversa que teve em 1996 quando jogava dardos com Matt Weiland, um amigo que trabalhava para a New Press e para a revista The Baffler.
- Sabe o que seria ótimo? - , lembra-se de Weiland ter dito. - Seria ótimo se alguém desenhasse um panorama da Frente Ocidental - .
Weiland concordou com a história: - Foi exatamente assim que aconteceu. Eu disse, 'Um dia vou ter minha própria empresa e vou publicar isso'. -
Em 2011, Weiland se tornou editor sênior da W.W. Norton & Co., e no primeiro dia de trabalho ligou para Sacco e ressuscitou a ideia. Como modelo, ele tinha em mente o livro de dobrar "Manhattan Unfurled", publicado em 2001 por Matteo Pericoli, mostrando o panorama leste e oeste de Manhattan em dois desenhos contínuos de 7,3 metros de comprimento.
- Eu estava pensando que meus novos colegas iriam rir de mim até que eu saísse da sala - , afirmou Weiland, mas eles o apoiaram bastante. Ele acrescentou em um e-mail que com as diversas datas comemorativas da Primeira Guerra Mundial, além de uma série de livros sobre o assunto previstos para o ano que vem, o momento pareceu perfeito.
Sacco nasceu na ilha de Malta, mas foi criado na Austrália, onde a Primeira Guerra Mundial é uma parte importante da consciência nacional.
- Para muitos australianos, a participação na Campanha de Gallipoli em 1915 marca a formação nacional do país - , afirmou. - O Dia de Anzac, em 25 de abril, era um feriado nacional. Quando eu era criança, tinha pilhas de livros sobre a Primeira Guerra Mundial e ficava fascinado com expressões como 'terra de ninguém' e 'além das linhas inimigas'. A sensação era a de observar a história escondido e às vezes não dá para evitar. Por isso, quando Matt me ligou, eu pensei: 'Bom, talvez seja a hora de eu cumprir minha promessa'. -
"The Great War" é basicamente uma obra de imaginação histórica, mas Sacco estava determinado a torná-la precisa até os mínimos detalhes e, por isso, ele passou uma semana nos arquivos fotográficos dos Imperial War Museums, em Londres, quase destruindo a fotocopiadora do local. Além disso, embora ele não tivesse um roteiro prévio em mente, ele queria que o desenho final não fosse estático, mas se movesse no tempo e no espaço.
Fazendo os rascunhos a lápis e completando com caneta, o trabalho fluiu rapidamente - ao menos para o padrões de Sacco. Os desenhos, que foram reduzidos a cerca de 25 por cento do tamanho original para entrarem no livro, foram feitos em cerca de oito meses. O resultado final, afirmou Sacco, provavelmente deve tanto à Tapeçaria de Bayeux, o tecido bordado de 68,3 metros de comprimento feito no século XI que mostra os eventos que levaram à conquista da Normandia, quanto à obra de Pericoli.
- Imaginei tudo como um desenho enorme - , afirmou Weiland. - Mas agora eu percebo que ele pensou no livro de uma forma narrativa, aproveitando suas habilidades como cartunista - .
Sacco escolheu mostrar Somme da perspectiva dos britânicos, não dos alemães, porque cresceu lendo as histórias dos britânicos. Contudo, ele disse que não acreditava que o desenho escolhesse um lado.
"Não existe lado certo", afirmou. "Eu tenho um ponto de vista sobre isso: o terror em relação ao que aconteceu. Não quero enfatizar a coragem, nem os erros do alto comando. Não quero demonizar o General Haig. Durante a Primeira Guerra Mundial, quem é que não foi além da conta?"
Pela mesma razão, ele preferiu não mostrar o caos e os massacres. Os corpos e membros cortados estão lá, mas é preciso olhar com atenção para encontrá-los. - Eu não queria exagerar no tom - , afirmou. - A realidade é horrível o bastante sem precisarmos exagerá-la -
HQ
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