Autor de romances publicados em 10 idiomas, com incursões também no universo dos quadrinhos e como roteirista e diretor de cinema, Tabajara Ruas é um dos pioneiros do Estado em um tipo de ficção de cunho mais pop, com um elenco múltiplo de referências. Ele recebeu o Cultura em seu apartamento em Porto Alegre, em um intervalo do processo de finalização do filme que dirige, Os Senhores da Guerra, baseado no romance de José Antônio Severo, e falou sobre seus livros, as circunstâncias em que foram escritos e seu gosto pelos exercícios de gênero:
Confira o primeiro capítulo da série Obra Completa, com Luiz Antonio de Assis Brasil
Na segunda reportagem da série, Charles Kiefer fala sobre assumir a função de retratar o minifúndio do RS
Zero Hora - A Região Submersa é seu primeiro livro e sua estreia se dá no Exterior. Poderia falar das circunstâncias que levaram esse livro a sair primeiro na Dinamarca?
Tabajara Ruas - Eu morava lá porque era exilado, fiquei 10 anos exilado. Era uma época em que andava lendo muito romance policial, Raymond Chandler principalmente, que eu descobri no meio dos anos 1970. Acho até hoje que ele é um escritor extraordinário, muito elegante, e vi muita ligação entre o que ele escrevia com o escritor uruguaio Juan Carlos Onetti, que eu adorava naquela época. Outra coisa que andava me atiçando a curiosidade eram as invenções da literatura latino-americana.
ZH - A certo momento, o livro abandona a pretensão de ser um romance policial clássico para incluir em sua trama uma conspiração meio maluca que se torna uma alegoria do regime militar, não?
Ruas - Sim, acaba sendo. Tem ali um lado político, nós estávamos ainda na ditadura, e eu era um exilado, então queria dizer alguma coisa. Não queria escrever um romance panfletário. Tomei cuidado para que a palavra "revolução" não aparecesse no livro nenhuma vez. Naquela época, era uma palavra importante. Na verdade, foi um livro de aprendizado, em que reuni todos os elementos da época que me chamavam atenção.
ZH - Muitos autores olham para esses livros de juventude, de aprendizado, com estranheza, às vezes com constrangimento. Qual é a sua visão hoje dessa primeira obra?
Ruas - Ele tem defeitos, evidentemente, são bem notórios. Talvez o defeito mais comum do iniciante é querer mostrar tudo, contar tudo. Os excessos desse livro vêm do fato de eu querer colocar muita coisa. Queria colocar a visão política, sem escancarar, e queria brincar ou exercitar as novidades da época, que não eram tão da época, já vinham do Huxley, o contraponto, o próprio Erico já havia feito coisas assim. Mas, naquela época, essas inovações estavam em um momento forte. Acho que o livro é meio desequilibrado por causa disso. Mas, por outro lado, há pouco, alguns vieram me falar que leram e que se divertiram muito. Então, acho que alguns acertos do livro permanecem.
ZH - Depois, o senhor publica O Amor de Pedro por João. Ele foi construído como um testemunho da geração exilada, já que é um mosaico narrativo?
Ruas - É um livro de ficção, embora baseado na experiência pessoal. As pessoas que estão ali, algumas eu conheci. Algumas das histórias me foram contadas, outras testemunhei de longe, mas, de certa maneira, é um testemunho daquela época. E me consola que os meus camaradas da época até hoje considerem o livro uma obra séria sobre a experiência que a gente viveu, de enfrentar uma ditadura, de padecer o exílio, circular pelo mundo sem documento.
ZH - Esse livro consolida um de seus recursos recorrentes, o de manipular o tempo por meio da prosa, estendendo a narração de um momento ou ação que se desenrolam rapidamente por meio da contraposição do que ocorre com o que se passa no íntimo dos personagens. É um efeito de câmera lenta. A origem do recurso vem da literatura ou do cinema?
Ruas - Algumas coisas a gente faz sem calcular, intuitivamente. Eu trabalhava lavando vidraças em um hospital das seis da manhã às duas da tarde, e à tarde escrevia. Eu me lembro que trabalhei muito aquele livro na reescrita. Mas, por outro lado, eu não buscava o truque. Essas coisas saíam naturalmente. Tem, sim, cortes de cinema. Um personagem começa a falar uma coisa e, de repente, aquela frase está sendo dita por outro personagem, em outro lugar, muito tempo depois. Mas essas coisas saíam naturalmente. E também porque naquele período a literatura que eu consumia era experimental. O Vargas Llosa, cada livro dele era uma novidade. Acho que A Casa Verde é uma obra-prima extraordinária, esse livro me influenciou muito, assim como Conversa na Catedral. Depois fui deixando um pouco essas experimentações.
ZH - Seus primeiros romances são narrativas contemporâneas. Depois, o senhor envereda pelo passado, em Os Varões Assinalados. Sentiu-se mais confortável a olhar o passado?
Ruas - Escrevi Os Varões Assinalados porque fiquei fascinado pela aventura completamente maluca daquela guerra. O Rio Grande tinha tradição de guerra, por causa da fronteira, mas a província desafiou o Império do Brasil, que era uma coisa gigantesca. E, dos personagens principais de Varões Assinalados, cada um tinha uma personalidade estranha e uma trajetória particular. A Revolução Farroupilha é uma grande história de aventura, e escrevi com a intenção de fazer um romance de aventura, não um romance histórico. Claro, pesquisei bastante, com rigor, não há invenção que desvirtue os fatos. É um épico surrealista, eu diria. Os caras superaram tudo aquilo, foram levando e poderiam, pelo que se diz, fazer a guerra por mais tempo. Mas também vêm a realidade, as traições. É a história de uma derrota, uma aventura amarga.
ZH - O senhor, na reconstrução histórica de Os Varões Assinalados, parece buscar premeditadamente a dimensão mítica dos personagens mais do que a humana. O livro foi escrito para criar mitos
Ruas - Eu acho que sim... Quando comecei a escrever, tomei bem o distanciamento de quem seria o General Netto, o Bento Gonçalves, o "traidor" Bento Manuel. Por mais que pesquise, por mais que busque, nunca vou saber quem são esses caras. Então, tenho que tratá-los como eles são hoje, como mitos, escrever mitologia. Acho que a melhor maneira de buscar os mitos é escrever um épico, a grande aventura. Até hoje as razões da guerra são muito discutidas, eu mesmo não entendo direito, sinceramente, e duvido que alguém entenda direito que motivações levam as pessoas àquilo. E eu tinha presente esse pensamento porque estava metido em uma guerra naquela época. Comecei a escrever na Dinamarca, depois de O Amor de Pedro por João, que era o épico contemporâneo que eu tinha vivido, e que escrevi muito à vontade, porque tinha conhecimento do que era a fuga, do que era o medo, do que era o sentimento de estar cercado e não ter para onde ir. E isso não tem tanto nos Varões porque ali quis dar o tom de aventura, que no livro anterior tem menos.
ZH - Ao mesmo tempo em que o senhor busca a dimensão mítica, há passagens que parecem bem iconoclastas, como o retrato do padre Feijó, figura dos livros de história, lutando contra a tentação.
Ruas - Isso aí é o instinto. Acho que nenhum personagem do livro é um herói por inteiro, talvez só o Netto. Naquela época, eu não sabia quem era o general Netto. Aí comecei a ler e, à medida que pesquisava, fui me dando conta de que nosso herói não era o Bento, era o Netto. Foi o Netto que proclamou a república, o Netto que tinha ideias republicanas, embora fosse um aristocrata rural. E o Netto foi até o final, aquela história de ir para o exílio, não sei se por vaidade ou por orgulho. Mas ele foi uma figura que atravessou todo o período, perdeu tudo e manteve a dignidade. E já me falaram muito dessa cena do Padre Feijó. Algumas dessas particularidades dele acho que foram conseguidas nA História da Grande Revolução, do Alfredo Varela. Foi dali que tirei que, quando o Feijó foi visitar o Araújo Ribeiro para fazer o convite para vir ao sul para ser governador e lidar com a situação, Araújo Ribeiro estava no banheiro.
ZH - O senhor falou que o fim de Os Varões Assinalados termina com a imagem de Netto como o único a manter a integridade. O senhor volta ao personagem em Netto Perde Sua Alma, praticamente um epílogo de Varões, para diminuir o caráter heroico do personagem?
Ruas - É um epílogo. Muita gente me perguntava o que aconteceu com os mocinhos do filme, Garibaldi, Netto, Bento Gonçalves. E eu tinha vontade de escrever um epílogo bem formal: fulano, aconteceu tal coisa, beltrano, aconteceu outra coisa... Estava trabalhando nisso quando o José Antônio Severo me fez um desafio para escrever um livro. Comecei a pensar e achei que valia a pena, porque, no Varões Assinalados, o Netto estava muito formal, muito herói do espetáculo. Tentei pesquisar, mas não há material sobre Netto, assim como há pouco material sobre Bento Gonçalves. O Rio Grande do Sul é fraco em biografias de personalidades. Escrevi o livro, e os pontos principais de Netto Perde Sua Alma são exatos em relação à história, mas aí eu inventei mais. A história dos negros é ficção. Os lanceiros existiram, claro, mas criei aqueles personagens do livro, a relação deles com o Netto, embora ele tenha criado um rapaz como filho. A ideia era dar um epílogo mais humano para Os Varões Assinalados.
ZH - Depois de trabalhar tanto na escala épica, Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez é um livro composto para soar mais intimista, mais como uma peça de câmara?
Ruas - Acho que sim. Queria escrever um livro sobre a minha cidade, Uruguaiana. Uma cidade de fronteira, tem o rio, a ponte, uma paisagem que marcou muito minha infância e adolescência. E Perseguição e Cerco... é totalmente ficcional, e acontecem duas coisas interessantes aí que, de certa maneira, me confortam. Primeiro: em Uruguaiana, todo mundo vem me dizer que a história que eu contei não era assim. Nunca soube de alguém que foi cercado pela Brigada na estação ferroviária e tenha dado tiroteio. A única semelhança que tinha era que minha família morava perto do rio, perto da ponte, eu via o trem passar. As pessoas que leram na cidade se reconheceram, e reconheceram a cidade. E sim, havia a intenção de fazer algo menor, mais de câmara, mais sensível.
ZH - É uma novela de formação, também, não? O protagonista sai da vida adulta tendo contato com a realidade da violência, da corrupção. A morte do Juvêncio é a morte da infância de seu sobrinho?
Ruas - É mais ou menos isso, claro. A morte da inocência. E isso em relação ao amor, também. Tem uma história de amor mal explicada ali, que, na verdade, é uma relação incestuosa, um tema tabu, e aquilo o garoto assistia sem entender exatamente o que estava acontecendo. A narrativa é uma reflexão feita muitos anos depois do acontecido. Naquele momento da vida, ele deparou com essas coisas que fariam parte do ritual de passagem dele para a vida adulta.
ZH - Essa sutil alusão ao relacionamento incestuoso entre os irmãos contrapõe Juvêncio, o bandoleiro contrabandista, valente e aventureiro, e o desacreditado pai do protagonista, apagado dono de uma livraria, visto como um banana, um desligado. É um comentário alegórico da oposição cultura versus barbárie no Interior?
Ruas - De alguma maneira, é. O pai era dono de uma livraria, um comunista, daqueles comunistas formais de cidade do Interior, como eu conheci vários lá. Quem vive em uma cidade pequena convive com essas coisas, fica fácil de ver. Queria contar essas coisas que via na minha adolescência em Uruguaiana. É curioso que muitas pessoas acreditem que seja um livro de memórias. Na minha infância e na adolescência, tinha uma visão do meu pai bem ao contrário da do personagem. O meu pai tinha uma profissão rara, que só fui encontrar na literatura, na Casa Verde, do Vargas Llosa. Meu pai era prático fluvial, e ele conhecia o rio Uruguai, porque era do tempo daquelas balsas da madeira, da devastação do verde na região ao Alto Uruguai. Ele descia lá de cima, Passo Fundo, até Uruguaiana, com umas balsas quilométricas. E conhecia o rio, que tinha baixios, correntezas, bancos de areia, e foi contratado pela Capitania dos Portos. Conduzia os barcos da capitania pelos vários portos que havia na região. Lembro de viajar com ele de barco, para levar médico, dentista, correspondência para as populações ribeirinhas.
ZH - É um livro escrito na volta do exílio, e narra a volta de Juvêncio de um exílio de cinco anos. Os dois exílios se encontram no livro?
Ruas - Acho que sim, talvez até inconscientemente. É muito cheio de significados que nem eu sei resolver direito. Na verdade, a volta dele é praticamente um suicídio, ele volta para morrer. É muito cheio de significados que nem eu sei resolver direito, talvez por sentimento de culpa, ou mesmo porque um sujeito como ele, com espírito libertário, um contrabandista, um exilado, tinha aquela paixão proibida pela irmã, sem solução, e a única solução ali seria a morte. Quer dizer, são coisas que estou pensando hoje, mas, na verdade, quando escrevo o livro, não me faço tantas perguntas e respostas. Prefiro ir contando e narrando com certa vagabundagem intelectual.
ZH - O Fascínio foi publicado no Correio do Povo como um folhetim interativo, dando a oportunidade de os leitores votarem para escolher os movimentos seguintes do personagem. Essa forma tão mais aberta é a responsável pelo tom mais irregular do livro?
Ruas - Foi um exercício literário. Mas, depois de pronto, eu me apropriei, mexi um pouco nele. À medida que escrevia, ia criando as condições para encaminhar a história para onde queria. Na verdade, é uma pequena parábola sobre o mal enraizado, tem a ver também com nosso estado, com Uruguaiana, com o espírito violento e sanguinário que nos assombra. Era um exercício, mas, ao mesmo tempo, havia a intenção de escrever algo que fosse relevante para nós. O livro foi filmado em Portugal, ele tem uma certa atração. Mas acho que foi o meu livro menos bem recebido pela crítica, recebeu mais críticas negativas do que positivas. Mas acho que também foram críticas muito rigorosas. Desses meus livros, o que mais me falam é esse. Talvez por ser pequeno e ter elementos de apelo popular. Mas, sim, tem defeitos. Podia ter mais umas 50 páginas para criar um contexto e uma verossimilhança mais aprofundada.
ZH - O senhor volta ao detetive Cid Espigão, protagonista de A Região Submersa, em O Detetive Sentimental, uma trama permeada de nonsense mas já sem a dimensão política que havia em A Região Submersa, com os generais robôs satirizando o regime. O Detetive é a reescrita do primeiro sem o subtexto alegórico?
Ruas - Na verdade, era um texto que estava parado, já havia sido publicado três vezes em formato de folhetim: primeiro no Correio do Povo, depois no fugaz Diário do Sul e, finalmente, em um jornal de Curitiba. E um dia comecei a ler e a achar interessante. Porque ele é multifacetado. Estavam ali todos os meus interesses, passando pela literatura mais vagabunda, filmes B, jacarés no esgoto, um conjunto bastante ridículo na coisa toda, mas era uma diversão e resumia uma trajetória. Achei que poderia ficar interessante. Muita gente gosta, outros silenciam completamente, sinal de que não gostaram. Mas muitos dizem que acham uma leitura divertida, e eu me diverti escrevendo. A Região Submersa foi escrito no exílio, era uma alegoria bem pouco sutil. O Detetive Sentimental é menos sutil ainda, é um exercício literário. Eu gosto de gêneros. Cada livro meu busca um novo tipo de escrita, que foi o que fiz também no folhetim Você Sabe de Onde Eu Venho.
ZH - Você Sabe de Onde Eu Venho, que o senhor publicou ao longo do ano passado neste caderno Cultura, insinua, nos primeiros capítulos, que vai seguir as trajetórias de alguns personagens, mas acaba se tornando um romance sobre a FEB e aquela primeira impressão parece ter ficado no caminho. O que mudou no processo?
Ruas - Mudou que o espaço que eu tinha para as ideias dos oito primeiros capítulos não era suficiente para desenvolver. Tinha vários personagens: um oficial da inteligência, um oficial do Estado-Maior, dois ou três pracinhas, duas ou três enfermeiras e mais uns aviadores. Mas, à medida que eu fui escrevendo, faltou espaço. Eu tinha o compromisso de um ano com a Zero Hora, 52 capítulos, e aí faltou espaço. Assim que eu terminei, comecei o projeto de um filme. Depois que Os Senhores da Guerra estiver concluído, quero me dedicar a revisar, a reescrever, vou trazer de volta as enfermeiras, os aviadores, e tentar montar um épico do Brasil na II Guerra. Quero aumentar a pesquisa e melhorar o texto.
Tabajara Ruas: obra completa
> A Região Submersa (1978, romance)
> O Amor de Pedro por João (1982, romance)
> Os Varões Assinalados (1985, romance)
> Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez (1990, romance)
> Netto Perde Sua Alma (1995, romance)
> O Fascínio (1997, romance)
>A Cabeça de Gumercindo Saraiva (1997, reportagem, com Elmar Bones)
> Meu Vizinho Tem Um Rottweiler (E Jura que Ele É Manso) (2007 infanto-juvenil, com Nei Duclós)
> O Detetive Sentimental (2008, romance)
> A Trilha da Lua Cheia (2012, infantojuvenil, com Nei Duclós)
Obra completa
Na terceira entrevista da série 'Obra Completa', Tabajara Ruas analisa seus livros e revisita sua trajetória
Para o autor "a melhor maneira de buscar mitos é escrever um épico"
GZH faz parte do The Trust Project
- Mais sobre: