David Bowie ficou 10 anos sem lançar disco de inéditas. Mas precisou de apenas uma semana para provar que ainda é uma figura relevante no imaginário musical - e um provocador incorrigível.
Disponibilizado em formato físico e virtual no último dia 12, seu novo disco, The Next Day, atingiu o primeiro lugar das paradas no último domingo com quase 100 mil cópias vendidas. É o primeiro número 1 de Bowie desde o lançamento de Black Tie White Noise, de 1993.
Três dias antes do lançamento, o músico britânico havia convocado seus fãs, em sua página oficial no Facebook, para colocar The Next Day no topo das listas ao invés do novo disco da banda Bon Jovi. "Vamos fazer The Next Day o número 1 e o título do álbum de Bon Jovi, What About Now (E agora?, numa tradução livre), ainda mais irônico do que parece", diz o comunicado.
Deu certo.
Além do gênio
Fernando Corrêa
Bowie disparou um alarme falso ao liberar Where Are We Now? em janeiro - não porque o single melancólico seja um peixe fora dágua, mas porque uma música avulsa dificilmente daria conta da miríade de referências que o britânico reúne em The Next Day, primeiro disco de inéditas em 10 anos.
No entanto, é pelo que tem de agitado que The Next Day deu aos fãs, no mínimo, uma dezena de novos motivos para nutrir a esperança por uma turnê - a começar pela faixa de abertura, homônima, oscilante entre o pós-punk e o glam rock que eternizou Bowie nos anos 1970. Há respiros lentos e jazzísticos, mas o Bowie de 2013 é tão roqueiro e apegado às luzes faiscantes do pop quanto o foi nas últimas décadas.
Controverso, sagaz e autêntico, ele confirma que há estrelas da música com brilho perene. No segundo single, The Stars (Are Out Tonight), o rock estelar é trilha para um tratado crítico sobre a cultura de celebridades. Ao sobrepor um quadrado branco ao seu retrato em Heroes (1977), o camaleão parece fazer referência a sua trajetória e às implicações de ter um legado tão influente: David Jones executa a música que ele próprio cunhou, mas que já não pode ser associada tão somente ao seu gênio criativo.
Mais a oferecer
Gustavo Foster
A frase com que o sexagenário David Bowie escolheu terminar seu mais novo disco é algo entre um resumo da carreira e uma verdade em que quer acreditar. "Eu não sei quem eu sou", repetida por Bowie em Heat, é um mantra que explica em parte o que significa seu novo álbum.
Em The Next Day, ele deixa claro que não se importa em errar, desde que seja indo além do óbvio. O disco é por vezes de uma introspecção quase acústica - como em Where Are We Now -, para logo desembocar em pops que cheiram à virada dos anos 1980 para 1990. Só o quadrado branco sobre a capa de Heroes (1977) já causa a estranheza necessária para tornar válido The Next Day - além de representar a reinvenção que já se tornou uma constante sua.
O curioso é que, em grande parte, as canções dialogam com um Bowie do passado, um Bowie que passou uma década sem lançar qualquer trabalho e que teve seu ápice há quase 40 anos. O que todos esperam é que seja menos um olhar para trás e mais um símbolo de retomada na carreira - que, parece, ainda tem o que oferecer.
Expectativa cumprida
Francisco Dalcol
Um novo disco de David Bowie, por si só, é um alento, uma indicação de que ainda se pode esperar um trabalho de rock adulto e contemporâneo em tempos em que o estilo parece pertencer ao público mais jovem. Mas The Next Day não é só isso, pelo fato de ser um dos melhores discos que o artista lançou desde os anos 1980.
Muitos já disseram que, embora tenha feito álbuns conceituais nos anos 1970, Bowie é maior como autor de grandes hits em lugar de grandes discos. Nessa linha, The Next Day apresenta 14 faixas que poderiam ter vida própria. Cada uma delas leva o ouvinte dedicado a encontrar relações com determinados momentos da carreira de Bowie, especialmente com os discos da segunda metade dos anos 1970, quando viveu e gravou em Berlim.
Na difícil tarefa de eleger uma música que dê conta de uma totalidade (ainda que parcial) do novo trabalho, The Stars (Are Out Tonight) talvez cumpra a missão. Amparado por um vigoroso e encorpado arranjo de guitarras, Bowie diz frases como as "estrelas nunca estão mortas", "vivemos perto da Terra", "as estrelas nunca estão longe", "elas nos assistem por trás das sombras", "os mortos voltam a viver". É um recado aos que esperaram por algo novo de Bowie ao longo dos últimos 10 anos. A expectativa foi cumprida.
Best of inéditas
Marcelo Perrone
É tentador para um fã de David Bowie, diante do prazeroso avanço faixa a faixa, espelhar The Next Day em algum dos tantos momentos inspirados de sua carreira. A referência à capa de Heroes (1977) e a homenagem a Berlim no videoclipe de Where Are We Now? foram pegadinhas: apontavam uma direção, mas Bowie toma outras várias. Um best of de canções inéditas. Assim soa The Next Day, justificando esse inovador conceito que só um artista sempre um passo à frente poderia apresentar a essa altura da carreira.
A efusiva aclamação que o disco recebe vem do reencontro que promove com admiradores de diferentes gerações, que podem pinçar no repertório uma amostra - sempre excelente - de seu Bowie favorito. A audição mais atenta, porém, mostra que cada faixa vai além de evocar uma determinada fase do artista. O pop dançante dos anos 1980 se funde numa mesma canção com experiências eletrônicas da virada dos anos 2000, com o peso de guitarras do projeto Tin Machine, com baladas épicas dos anos 1970. Minha faixa favorita, por enquanto: Id Rather Be High, com o fraseado grudento da guitarra de Gerry Leonard, que tem trabalhado com Bowie ultimamente. E olha que no disco estão tocando guitarristas como David Torn (Heathen e Reality), Earl Slick (Young Americans e Station to Station) e Toni Visconti (alter ego musical de Bowie e seu parceiro desde Space Oddity).
Candidato do ano
Gustavo Brigatti
Depois de décadas construindo uma carreira em função da imagem, David Bowie volta se escondendo. A capa reciclada de The Next Day, com seu rosto encoberto, parece dizer "não olhe para mim, apenas escute a minha música". É um recado óbvio: você não precisa conhecer David Bowie para gostar de David Bowie. Pelo menos não em The Next Day.
Intencionalmente ou não (nunca se sabe com Bowie...), sua sonoridade é quase alienígena para os dias de hoje, afinal trata-se de um disco de rock orgânico e maduro, feito por e para adultos. Por isso, suas 14 faixas não reinventam ou apontam nenhum caminho novo: pelo contrário, elas mostram que Bowie dedicou-se menos a criar e mais a resgatar um cuidado no fazer musical que há muito se perdeu. Há, em The Next Day, uma preocupação em soar coerente, limpo e sólido, seja nos momentos mais delicados (Where Are We Now?, You Feel so Lonely), seja nos temas mais dançantes (If You Can See me, The Stars). É um registro simples e direto, como apenas os grandes músicos, muito seguros de sua história e competência, são capazes. Sério candidato a disco do ano.
Noção do passado
Carlos André Moreira
À primeira audição, o novo disco de David Bowie, The Next Day, soa desconcertante. Fica difícil entender por que um artista com quase meio século de carreira apresenta um álbum com tantas letras sobre juventude, inseguranças adolescentes, visões deslocadas de garotos perdidos. Tudo isso circundado por um conjunto sonoro repleto de referências a texturas eletrônicas, batidas marciais, cadências operísticas de espetáculos da Broadway. Estaria Bowie apegado ao saudosismo - algo insinuado pela própria capa do álbum , que revisita Heroes, grande sucesso de 1977?
Mas não demora muito para que o ouvinte entenda que Bowie canta, sim, angústias e perigos juvenis, como em Id Rather Be High ou Love Is Lost, mas suas letras carregam a sabedoria de um homem mais velho refletindo sobre o que, no fim, está na essência da aventura humana: a passagem do tempo, a solidão, a finitude, a frágil procura de contato e amor para combater um "medo tão velho quanto o mundo". Logo cai a ficha: The Next Day não é passadista, é, sim, um disco disposto a ligar o passado ao futuro (o "dia seguinte" da faixa título, sobre o qual a morte também lança sua sombra). É um disco que ressignifica o passado - algo revolucionário em um momento em que o pop parece preso a um presente eterno.