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Alguém pode ser ensinado a ser um espectador? Se depender de uma iniciativa que terá início em abril, em Porto Alegre, a resposta é positiva.
Trata-se da Escola de Espectadores de Porto Alegre (EEPA), projeto que terá cerimônia de lançamento nesta terça-feira, às 20h, no Teatro de Câmara Túlio Piva (República, 575), na Capital, com entrada franca. No evento, será apresentada uma cena com as atrizes Deborah Finocchiaro e Sandra Dani, dirigida por Graça Nunes, com texto de Renato Mendonça - coordenador da EPPA - inspirado em Esperando Godot. Haverá uma palestra com o pesquisador argentino Jorge Dubatti, que criou a Escola de Espectadores de Buenos Aires (leia entrevista abaixo).
Iniciativa da Coordenação de Artes Cênicas da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre, a Escola de Espectadores funcionará assim: os alunos assistirão a um espetáculo de teatro ou dança. Depois, receberão os criadores para debater o trabalho, com mediação de Mendonça, que foi repórter e crítico de teatro e música de Zero Hora de 1994 a 2010. Os alunos também aprenderão fundamentos de artes cênicas. O objetivo é dar ferramentas para as pessoas assistirem aos espetáculos de forma crítica. Será criada uma página no Facebook, onde alunos poderão escrever suas percepções.
- Existe uma segmentação radical no público de Porto Alegre. Há aqueles que frequentam espetáculos de teatro contemporâneo e aqueles que frequentam peças mais tradicionais. Queremos esses dois públicos na escola - diz Mendonça.
O coordenador da EEPA diagnostica que o espaço para debate sobre teatro e dança na mídia impressa foi enxugado nos últimos 20 anos e que a plataforma de discussão migrou para a internet de forma "precária":
- A internet, de modo geral, ainda não se firmou como um espaço qualificado. A Escola resgata o debate presencial, o que acreditamos que é um ganho de qualidade.
Então: é possível ensinar um espectador? O coordenador de artes cênicas da Secretaria da Cultura, Breno Ketzer Saul, responde afirmativamente:
- É possível qualificar o público, trabalhar a percepção e ampliar a capacidade das pessoas de aproveitar a experiência teatral.
A longo prazo, essas novas informações - aliadas ao poder multiplicador dos alunos - podem interferir em comportamentos arraigados, como o costume do público de aplaudir espetáculos sempre de pé, diferentemente da plateia de outros países, que se levanta apenas quando julga a atração fora de série.
- Se tivermos um público mais acostumado com as artes cênicas, será mais exigente, torcerá o nariz para certas coisas. Esse costume de aplaudir sempre de pé talvez seja fruto de pouco contato com o teatro e com a dança - acrescenta Ketzer.
Como participar:
> As aulas da Escola de Espectadores começarão no dia 13 de abril.
> Serão encontros quinzenais na Sala Álvaro Moreyra do Centro Municipal de Cultura, em que os alunos debaterão espetáculos e aprenderão fundamentos de artes cênicas.
> Há mais de 80 inscritos (já foi criada uma lista de espera). As inscrições devem ser feitas por meio do e-mail inscrevacac@gmail.com.
> As atividades serão gratuitas e não há pré-requisito: pode participar qualquer pessoa interessada em teatro e dança. Segundo a Coordenação de Artes Cênicas da Secretaria Municipal da Cultura da Capital, cerca de dois terços dos alunos inscritos têm familiaridade com estas áreas.
Experiência similar foi realizada anteriormente
Em 1997, foi colocada em prática, em Porto Alegre, a Oficina para Formação de Plateia. A experiência foi repetida no ano seguinte. Compreendia palestras, debates e visitas guiadas aos bastidores dos teatros. Os participantes visitavam camarins, depósitos, cabines de luz e som e ouviam explanações sobre a função de cada equipamento. Na segunda edição, os alunos também assistiram a ensaios de espetáculos para acompanhar a evolução do processo de criação. Após os ensaios, eram realizados debates com o diretor da peça.
Quais são os desafios dos espectadores gaúchos? Luiz Paulo Vasconcellos, coordenador de artes cênicas da Secretaria Municipal de Cultura na ocasião da oficina, cita um trecho de uma aula de Fernanda Montenegro realizada em 1967: "Tudo nos atrapalha, a instabilidade econômica, o calor, os temporais, a falta de luz, de água, as férias escolares, as festas natalinas, o Carnaval, o início das aulas, a Semana Santa, as eternas crises políticas. E sobretudo: a não necessidade de ver teatro - que o brasileiro tem".
Trazendo para a realidade do Rio Grande do Sul, Vasconcellos acrescenta outros desafios:
- O frio, a incompetência das autoridades municipais na manutenção dos teatros e, pior ainda, a mediocridade, o lugar-comum, a autoajuda, as comédias insossas que tomaram conta de nossos palcos. Eu sei que é necessário sobreviver, pagar o aluguel e o colégio do filho, e para sobreviver o ator/diretor/dramaturgo precisa de público.
Vasconcellos acrescenta que não foi realizada uma avaliação do resultado da experiência:
- Mas posso garantir que os participantes das duas oficinas eram sempre muito atentos, curiosos e assíduos.
"A escola deve responder à realidade da cidade", diz teórico e crítico de teatro
Diretor da Escola de Espectadores de Buenos Aires, criada em 2001, o pesquisador, teórico e crítico Jorge Dubatti defende que iniciativas desse tipo são fundamentais para estimular o boca a boca, que é um importante modo de circulação das informações sobre teatro e dança. Na entrevista abaixo, concedida por e-mail, ele afirma que as Escolas de Espectadores devem se adaptar às necessidades das artes cênicas de cada cidade:
Zero Hora - Por que a Escola de Espectadores é importante?
Jorge Dubatti - Uma das instituições mais importantes dos campos teatrais é o boca a boca, rede de oralidade que contribui para a circulação de informação e valorização dos espetáculos. Os espectadores são a parte mais ativa e relevante dessa rede. Uma Escola de Espectadores é a principal aliada desse boca a boca para contribuir para formar espectadores mais críticos, informados, exigentes, apaixonados pelo melhor teatro.
ZH - É possível "formar" espectadores?
Dubatti - Sim, no sentido de brindar-lhes com mais ferramentas vinculadas à especificidade do teatro, uma arte muito diferente do cinema, da literatura ou das artes plásticas. A escola dá aos espectadores ferramentas de teoria, história, técnicas teatrais, tendo como base uma ética que chamo de "ética do espectador companheiro", ou seja, do espectador que "compartilha o pão" com o artista. Além disso, a escola favorece o encontro e o diálogo dos espectadores com os artistas, que lhes mostram, dessa maneira, um mundo que o espetáculo sozinho não permite ver: o mundo do processo, do trabalho.
ZH - Como foi a ideia de criar a Escola de Espectadores em Buenos Aires?
Dubatti - Nasceu em 2001, frente à necessidade de outorgar ao teatro de Buenos Aires a importância simbólica e intelectual que merece. A Escola de Espectadores de Buenos Aires foi crescendo e hoje é um dos fatores fundamentais do boca a boca portenho. Muitos elencos e diretores nos sinalizaram que suas temporadas aumentaram e foram enriquecidas com a afluência de alunos da Escola a seus espetáculos e com o boca a boca que foi gerado.
ZH - Desde que foi criada a Escola de Espectadores em Buenos Aires, o que mudou nas artes cênicas da cidade?
Dubatti - Buenos Aires é um campo teatral gigantesco e em permanente metamorfose. Em 2012, tivemos cerca de mil estreias. As poéticas dos artistas sempre vão adiante do público, muitas delas parecem ocorrer no futuro. A Escola de Espectadores ajuda a identificar aqueles espetáculos que, através da excelência, da investigação, da busca, em todos os circuitos e em todos os gêneros, constituem avanços de inovação.
ZH - Que adaptações são necessárias para as Escolas de Espectadores em outros países?
Dubatti - A Escola de Espectadores funciona em Buenos Aires, Bahía Blanca, Mar del Plata e outras cidades da Argentina, em Montevidéu, México, Santiago do Chile, La Paz. Em cada cidade, tem um funcionamento diferente, de acordo com a realidade teatral, com a história e com os comportamentos do público e também com a dinâmica dada por seu coordenador. Cada escola deve responder à realidade, às necessidades e às possibilidades concretas do teatro de cada cidade.
ZH - Como o senhor vê o cenário das artes cênicas na América Latina?
Dubatti - O teatro da América Latina é diverso, potente e rico em qualidade e em quantidade. Nos falta uma rede de turnês e intercâmbios para conhecê-lo melhor. Espero que as Escolas de Espectadores, nas diferentes cidades da América Latina, contribuam para armar essa rede.