Quando sua mãe morreu, há três anos, Lynell George, escritora e professora assistente de Jornalismo na Universidade Loyola Marymount, em Los Angeles, assumiu a responsabilidade de preparar o tradicional gumbo para o réveillon da sua família. Folheando livros de receitas da mãe, ouvia ao fundo sua voz com sotaque crioulo.
- Havia coisas riscadas e ela tinha deixado notas como 'precisa de mais de caranguejo', 'buscar andouille na segunda-feira' e 'não colocar quiabo' - contou George. - Foi muito emocionante. Senti que ela estava ao meu lado.
Os fantasmas perambulam nos antigos livros de receitas, possivelmente a mais anotada forma de literatura. Pessoas que nunca sonhariam escrever em quaisquer outros livros não hesitam em editar ("acrescente 1,5 colher de chá de pimenta-caiena"), escrever comentários ("nunca mais") e até mesmo registrar ocasiões especiais ("festa de aniversário de 1984") ao lado de receitas. Quer tenham valor prático, histórico ou sentimental, estejam ou não borradas com ganache de chocolate, as margens dos livros de receitas podem contar a história de uma vida e ser uma duradoura celebração da memória de quem escreveu.
Para Beth Ann Fennelly, poetisa e professora de Inglês da Universidade de Mississippi, em Oxford, ler os livros de receitas de sua mãe é como ler o seu diário.
- Ela costumava escrever não apenas as coisas que esperaríamos ver ao lado de uma receita, como 'aumente o fogo para 375 nos últimos 15 minutos', mas também os convidados que viriam jantar, além dos acompanhamentos - disse Fennelly. Além disso, sua mãe, que foi dona de casa durante toda a vida, tinha uma maneira curiosa de tomar nota do modo como as coisas eram servidas, chegando a lembrar um haikai:- A sopa de aspargos sobre os guardanapos de linho amarelo com o açafrão no prato da Wedgewood.
Fennelly também tem escrito em seus próprios livros de receitas para indicar quais são os pratos favoritos de seus filhos e a refeição que ela preparou para o marido quando lhe contou que estava grávida do segundo filho.
- Servi um pato assado com molho do porto que levou oito horas para ficar pronto - escreveu ela. - A sobremesa foi ele abrir a caixinha que ele pensava ser uma caneta, mas que na verdade continha o teste de gravidez com resultado positivo.
A data, o cardápio e a surpresa estão todos registrados em seu livro de receitas.
- Quando penso nas coisas que salvaria em um incêndio, penso nos meus livros de receitas - disse ela. - Eles são os meus tesouros.
Embora a ideia de Fennelly se separar de seus livros de receitas seja improvável, livreiros dizem que suas anotações poderiam atrair compradores. - Há colecionadores que consideram as anotações mais valiosas e interessantes do que as receitas - disse Bonnie Slotnick, proprietária de uma livraria homônima em Greenwich Village, especializada em antigos livros de receitas. - Antes eu pedia desculpas quando havia anotações nos livros, mas tem gente que acha essa a melhor parte!
Para Paula Fujiwara, médica de São Francisco que coleciona livros de receitas do século XIX, as margens são capazes de nos abrir as portas de outro mundo.
- As anotações nos dão uma perspectiva de outra época; apresentam-nos o que os proprietários dos livros de receitas pensavam - disse ela.
Um dos livros de receitas mais intrigantes de sua coleção é uma compilação de 1859 intitulada "Breakfast, Dinner and Tea". Ele pertencia a Ellen Pike, que, de acordo com a sua emaranhada letra vitoriana, adorava geleia de maçã desidratada. Em várias páginas, também registrou de forma comovente a data de falecimento de seu filho de um ano.
Mais bem-humoradas são as inscrições que Robin Graham, editora independente de Milwaukee que coleciona livros de culinária de meados do século XX, encontrou em um exemplar de "The Special Diet Cookbook", de Marvin Little. Na folha de rosto desse livro de 1952, há um manuscrito inflamado e gramaticalmente incorreto sobre os perigos mortais da mostarda, das claras de ovos, da pimenta, do vinagre e do "sal da terra". Na primeira página de um capítulo sobre receitas para aliviar a constipação, a mesma pessoa escreve: "Isso parece ser melhor".
Embora não se saiba ao certo a quem pertenceu o livro, Graham imagina um homem calvo e corpulento, com óculos e bigode. - É divertido dar um rosto à pessoa, imaginar quem ela era - disse ela, acrescentando que as receitas certamente não são o que chama a sua atenção no livro. - Ninguém come geleia de carne, né?
As anotações de lendas da culinária são particularmente apreciadas. Julia Child costumava escrever seu nome em muitos de seus livros de receitas, bem como a data em que os tinha adquirido e em qual cozinha os havia utilizado - ela tinha casas em Cambridge, Massachusetts, e na Provença, na França. Hoje sua coleção de livros de culinária está na Biblioteca Schlesinger, no Instituto Radcliffe de Estudos Avançados da Universidade de Harvard.
É revelador o fato de que as anotações mais extensas de Child estão junto a trechos referentes a tripas e vísceras. Mas talvez ainda mais interessantes sejam os acréscimos redigidos por quem lhe deu o livro. Um exemplo é Nina Simonds, que Child incentivou a levar adiante o seu interesse pela culinária da China viajando até o país, no qual ela veio, por fim, a traduzir e escrever livros sobre a comida chinesa.
- Nina Simonds enviou uma cópia de um de seus livros para Julia e escreveu uma carta calorosa de página inteira na folha de rosto, pois os regulamentos postais chineses proibiam a inclusão de uma carta separada junto a um livro - disse Marylene Altieri, curadora da Biblioteca Schlesinger. A longa nota descreve seu aprendizado em um pequeno restaurante na China que era "generoso com as provas".
A sagacidade mordaz da renomada escritora britânica especializada em gastronomia Elizabeth David fica evidente nas margens de seus livros de culinária, hoje mantidos na Biblioteca Guildhall, em Londres. Seus rabiscos aparecem em pedaços de papel (recibos de supermercado, passagens de ônibus, cartões postais, notas adesivas) distribuídos ao longo dos textos. Em seu exemplar de "The Cooking of Italy" (1969) da escritora especializada em comida americana Waverley Root, ela escreveu: "É lamentável, mas Waverley Root é uma farsa". Referindo-se a uma receita de salada fria de macarrão envolvendo "peras enlatadas" em "Ulster Fare" (1945), do Clube do Instituto da Mulher de Belfast, Davi escreveu: "Parece ser simplesmente o prato mais repugnante já inventado".
Sejam chefes famosos ou cozinheiros comuns, os usuários dos livros de receitas costumam estar de prontidão para colaborar e criticar, disse Heather Jackson, professora de Inglês da Universidade de Toronto e autora de "Marginalia: Readers Writing in Books". Embora não costumem se atrever a excluir personagens ou sugerir um final alternativo para, digamos, uma obra de ficção, os leitores sentem que podem fazê-lo em um livro de receitas. No decorrer de sua pesquisa, Jackson disse que muitas vezes encontrou receitas alteradas ou inteiramente novas escritas ou coladas em livros de receitas.
- As pessoas podem abominar notas ou textos sublinhados em outros livros, mas ninguém se incomoda com intervenções em livros de receitas - disse ela. - O que acontece é que ao longo do tempo essas notas que parecem práticas e periféricas adquirem um valor histórico, e dentro de uma família ou entre amigos, podem adquirir um valor sentimental.
As críticas e comentários sobre receitas publicados em sites como Epicurious.com e Allrecipes.com simplesmente não são a mesma coisa, disse Laura Petelle, advogada de Peoria, Illinois, que costuma escrever em seus próprios livros de culinária e gosta de pedir emprestados os de seus amigos para ver as suas notações. - Quando lemos notas manuscritas em um livro de receitas cheio de manchas e dobras, isso denota que aquele objeto tem personalidade, e aprendemos o que e como quem o escreveu preparou para a sua família - disse ela. - As pessoas que compartilham receitas na internet são loucas, chegando a sugerir que a gente substitua tomate por ketchup.
Quanto aos autores de livros de receitas, Anthony Bourdain, por exemplo, diz que não ficaria nem um pouco ofendido por saber que exemplares de seu popular livro "Les Halles Cookbook" estavam cheias de notas e sugestões de usuários. - Agrada-me imaginar alguém rabiscando, derramando molho ou pimenta moída em meu livro - disse ele.
The New York Times
Livros de receitas com anotações feitas à mão viram item de colecionador
Registros nas margens das páginas contam histórias que podem abrir portas ao passado
GZH faz parte do The Trust Project