Paris - Os músicos de Kasbah, em Argel, foram dobrados e quebrados pela história. Os bares e cafés que floresciam sob o governo colonial francês eram sua subsistência, e a guerra que trouxe a independência, em 1962, significou o fim de seu modo de vida - e de sua música característica.
Os judeus entre eles fugiram para a França, para nunca mais voltar. Os moradores muçulmanos do antigo e maltratado bairro operário, o Kasbah, foram realocados pelo novo governo argelino para conjuntos habitacionais nos arredores da cidade.
Os músicos perderam contato uns com os outros. A versão argelina da popular música árabe conhecida como chaabi foi esquecida.
Hoje, 50 anos depois, eles estão juntos novamente. Na noite de 30 de setembro, 20 deles reuniram uma plateia de 900 pessoas no pátio aberto do Museu de Arte e História do Judaísmo, no centro do bairro de Marais.
Recebidos com aplausos e gritos, a orquestra de muçulmanos e judeus chamada El Gusto se apresentou sem interrupções por quase duas horas e meia.
- Tenho uma nova vida, um renascimento - declarou Mohamed Ferkioui, o acordeonista do grupo, com 86 anos. - Nós comemos juntos, dormimos juntos. Somos uma família, realmente uma família. Isso é o paraíso.
Conforme o show se aproximava do fim, ele largou seu instrumento, passou para o centro do palco e começou a dançar. Ele girava os ombros e quadris em movimentos que desafiavam a lógica, levantava os braços e acenava para o público se aproximar. Ele repousou uma mão sugestivamente na base de sua barriga, e outra em suas costas.
Robert Castel, cantor e violinista de 79 anos, juntou-se a ele. Os dois homens - Ferkioui, um muçulmano que ainda mora no ignorado Kasbah, e Castel, um judeu que hoje vive num elegante subúrbio de Paris - dançaram juntos, quase se tocando.
O concerto foi uma comemoração da nova exposição do museu, "Os Judeus da Argélia", e marcou a primeira apresentação de argelinos nos 14 anos de história do museu. Para os músicos, representava ainda mais.
A criação da orquestra levou a uma redescoberta de sua música, uma mistura de sons andaluzes e cantos religiosos que incorporam um canto forte e gutural com a música de um piano, uma flauta, cordas e percussão.
Ela reviveu amizades onde religião, classe e etnia não têm significado, e reencarnou os velhos homens como artistas dignos de respeito.
- Olhe para nós - para nossa idade - viajando, comendo ótimas refeições, ficando em hotéis de três e quatro estrelas, sendo pagos - disse Rachid Berkani, tocador de alaúde de 75 anos, exibindo a mala Hugo Boss comprada em Londres.
A história da El Gusto começa com um encontro ao acaso. Nove anos atrás, Safinez Bousbia, uma arquiteta argelina de 22 anos que morava na Irlanda, entrou numa loja no Kasbah onde Ferkioui estava fazendo e pintando espelhos de madeira.
Ela lhe perguntou sobre as velhas fotos em preto e branco afixadas a um espelho. Nas horas seguintes, Ferkioui desfiou a história de como ele havia sido parte de um famoso conservatório e trupe musical de chaabi na década de 1950.
- Eu vi aquele anjo maravilhoso na minha frente - disse Ferkioui sobre o primeiro encontro. - Deus a havia enviado.
Bousbia decidiu reunir os músicos novamente.
As histórias desses homens, quando costuradas lado a lado, criam um mosaico bruto dos últimos 50 anos da história da Argélia.
Luc Cherki, cantor e violonista judeu de 79 anos, mudou-se para a França com a família no final da década de 1930, foi escondido por uma família cristã durante a Segunda Guerra Mundial e voltou à Argélia depois da guerra, onde foi funcionário público. Então foi embora de vez quando os judeus foram perseguidos, depois da independência.
Berkani, muçulmano, passou quatro anos na prisão por suas atividades políticas contra os franceses durante a guerra pela independência da Argélia. Foi torturado com choques elétricos e simulação de afogamento. Na prisão, ele fez instrumentos de cordas com panelas e fios elétricos, tocando para os outros prisioneiros. "Aquilo levantava o moral", explicou ele.
Castel, filho de um famoso compositor de chaabi, deixou Argel por Paris quando veio a independência, tornou-se ator e roteirista e foi condecorado com a Legião de Honra.
Liamine Haimoune, cantor e bandolinista de 66 anos, perdeu dois filhos durante a rebelião islâmica da Argélia nos anos 90, e parou de tocar por uma década. "Eu estava com raiva do mundo todo", disse ele. "A tristeza nunca deixa meus olhos, é claro. Mas meu rosto - agora ele voltou a sorrir!"
Mas o número de músicos está diminuindo. Vários morreram desde que a orquestra foi criada, alguns sendo substituídos por seus filhos. Maurice El Medioni, pianista de 84 anos que mora em Israel, estava doente demais para viajar para o concerto de Paris. Mustapha Tahmi, violonista de 76 anos, sofreu dois derrames recentemente e caminha com a ajuda de uma bengala.
Há negócios inacabados. A orquestra ainda não apresentou um concerto completo na Argélia, pois os músicos judeus, que formam uma pequena mas crucial parte da orquestra, mostram relutância em voltar. O país ainda se recupera de uma guerra civil que estourou depois que os resultados das eleições de 1992 foram anulados, e o Grupo Islâmico Armado declarou guerra a não-muçulmanos e estrangeiros.
- Como judeu e cantor, tenho medo de voltar - declarou Cherki. - Eu adoraria voltar ao meu país. Mas hoje ele é um país diferente.
Berkani ofereceu uma sugestão para facilitar. - Em vez de virar a página da história - disse ele - você a queima.
The New York Times
Antes esquecida, canção chaabi renasce com concerto na França
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