Uma mulher e um jovem se encontram em um apartamento à venda e a disputa para ver quem fica com o imóvel se torna um embate entre gerações.
Foi com esse espírito de um "espetáculo de ideias" que a atriz Lúcia Veríssimo escreveu a peça Usufruto, em 2005, durante as gravações da novela América. O espetáculo dirigido por José Possi Neto, que também conta com o ator Cláudio Lins no elenco, terá apresentações neste sábado (18/06), às 21h, e no domingo (19/06), às 18h, no Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/nº, fone 51 3227-5100), em Porto Alegre.
Nesta entrevista, concedida por e-mail, Lúcia, 52 anos, diz que está se "reinventando" e explica as motivações do espetáculo, como o contraste entre uma geração de jovens "caretas, reacionários e extremamente acomodados" com outra geração - a sua - que lutou por liberdade política e comportamental nas décadas de 1960 e 1970. Usufruto, em sua definição, é uma "comédia provocativa".
Zero Hora - Ao decidir escrever este texto, suponho que desejasse abordar questões que a inquietam, impressão que fica confirmada quando a peça é apresentada como um "espetáculo de ideias". Que questões são essas?
Lúcia Veríssimo - Na verdade, sempre escrevo para colocar à disposição as ideias que estão dentro da minha cabeça naquele momento, sem que precise de um intermediário para tal. Por isso, mantenho meu blog há tantos anos. Usufruto nasceu de uma triste constatação: do quanto retrocedemos. Faço parte de uma das últimas gerações que se expuseram e lutaram por mudanças. Na efervescência dos anos de chumbo no país, acontecia também uma necessidade de mudanças no mundo inteiro. Estávamos vivendo os anos 1960 e 1970, que foram de suma importância para questionar antigos padrões de comportamento social. No Brasil, também sentíamos a mesma necessidade e não só pelo fato de que lutávamos contra o golpe militar e a repressão. Assumimos as lutas de revolução sexual; musical; vivemos o sexo, drogas e rock'n'roll. Sou fruto dessa geração. E chegar aos meus 52 anos, acreditando na luta, encontrar jovens caretas, reacionários e extremamente acomodados foi devastador. É muito triste e eu não podia ficar calada. O teatro tem como principal função ser o espelho de sua sociedade. Fazer com que seus espectadores se inquietem e voltem para casa com, pelo menos, a dúvida na cabeça. O teatro expõe os aleijões da raça humana, discute os pontos de vista. Esse é o verdadeiro teatro. Só acredito que a vida imita a arte e nunca o contrário. Disso tudo nasceu Usufruto. Mas tudo é colocado de forma divertida. É um espetáculo de discussão de idéias, sim, mas o faz de forma engraçada. É uma comédia provocativa.
ZH - O texto da peça homenageia Roland Barthes (1915 - 1980), um dos grandes pensadores estruturalistas do século 20. Quais as referências que foram buscadas e de que maneira elas aparecem?
Lúcia - Sou uma analisanda que frequenta consultórios de psicanálise há 36 anos. E nem acredito em alta. Sou uma leitora de Jung, Freud, Lacan e uma apaixonada por Barthes. A forma de pensar dele é colada na minha e sua forma de escrever me fascina. Portanto, ele está muito dentro de mim. Quando sentei para escrever, fui colocando tudo que eu queria discutir sem voltar atrás para ver como estava ficando, até a palavra "fim" aparecer na tela (quem for ao site de Usufruto vai ver que foi escrito em uma semana, nos intervalos de mudança de luz, das gravações de uma novela - dentro de um caminhão, entre bois e cavalos). Passagens de Usufruto têm íntima ligação com pensamentos de Barthes que ecoam dentro de mim. Por isso, resolvi homenageá-lo nomeando a peça como um tributo a ele.
ZH - O espetáculo trata do encontro de uma mulher com um jovem "muito conservador". De que forma se mostra esse conflito de gerações? É possível dar um exemplo?
Lúcia - Os exemplos estão em todos os lugares. Basta observar os absurdos que vêm acontecendo. Uma estudante entra numa faculdade vestindo uma minissaia e é covardemente atacada. Quando usamos nossas primeiras minissaias, nos anos 1960, não despertamos tamanha agressividade. O espetáculo é o tempo todo um choque de pensamento. Uma mulher que viveu um casamento aberto com a verdade colocada acima de qualquer outra situação e depara com um jovem que acredita em relações fechadas e hipócritas. Com decisões de vida baseadas em pensamentos retrógrados de uma sociedade questionável. Ela é de uma irreverência e persuasão, enquanto ele é um prato cheio para discussão. E nada melhor do que a perversão para derrubar determinados conceitos. Os jovens são, por natureza, cheios de verdades absolutas e o grande barato de amadurecer é ter a consciência de que não existem verdades absolutas.
ZH - Você poderia comentar que estímulo a levou a tomar as rédeas de um projeto teatral em meio a tanto tempo dedicado à TV, linguagem na qual obteve grande reconhecimento? Por que o teatro a seduziu naquele momento, em 2005, quando escreveu a peça?
Lúcia - Favoreci minha carreira na TV por total acomodação e me questiono imensamente por isso. É no teatro que o ator se recicla, que se aprimora, que se dedica mais a sua função. Comecei no teatro e, quando fui chamada para a TV, ela me absorveu completamente. Foram anos em que eu praticamente não tinha intervalos entre uma produção e outra. O teatro exige uma dedicação enorme. Isso não é desculpa, pois eu não deveria ter me afastado dele da forma como fiz. Na verdade, voltei antes. Viajei com uma produção por dois anos antes de escrever Usufruto e começar a preparar a produçao dele. Agora não consigo mais enxergar minha vida sem estar no palco a maior parte do tempo. Estou me reinventando, me redescobrindo como atriz e deixando vir a dramaturga que sempre esteve cobrando uma aparição. Isso tem me mobilizado mais ultimamente. Agora estou fazendo o tratamento cinematográfico de Usufruto e começando a escrever outro espetáculo ainda mais inquietador que esse.
Teatro
Lúcia Veríssimo apresenta peça "Usufruto" em Porto Alegre
Em entrevista, atriz critica jovens "caretas" e "reacionários"
Fábio Prikladnicki
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