Não tem como cravar uma data e apontar quando Yamandu Costa começou sua carreira musical. Aconteceu muito cedo, ainda pequeno, enquanto acompanhava os pais, Algacir Costa e Clari Marson, nas viagens pelo Brasil afora com o grupo Os Fronteiriços. Sem longos anos de preparo, apenas com a vivência do dia a dia, o menino subia ao palco, cantava e tocava um instrumento. Animava os bailes e ajudava no ganha pão da família. O aprendizado pelo improviso.
Completando 45 anos no próximo dia 24, Yamandu colhe os louros de uma vida inteira dedicada à arte. É considerado um dos maiores violonistas do mundo, vencedor do Grammy Latino de Melhor Disco Instrumental em 2021, ao lado de Toquinho, gigante da história da música brasileira, com quem gravou Bachianinha.
Com uma agenda repleta de destinos internacionais, de Nova York a Paris, passando pela Rússia e pelo Japão, o gaúcho de Passo Fundo, criado em Porto Alegre, estabeleceu sua casa em Portugal, ponto estratégico para levar seu violão passear pelo mundo.
Não é uma arte que tem um ponto de chegada. A música é uma arte de eterna procura
YAMANDU COSTA
Mas é na terra natal que vai celebrar seu aniversário, com um show no Theatro São Pedro no dia do seu nascimento: 24 de janeiro. Quinze dias antes, quando conversou com a reportagem de Zero Hora, ele ainda não tinha repertório certo e nem sabia se levaria convidados para o palco:
— Não vou ficar alugando o pessoal. Vou fazer um concerto intimista tocando coisas novas, músicas que foram feitas há pouco tempo. Mas ainda não pensei profundamente sobre isso. Devo mostrar novidades, mas com um tom intimista, batendo papo com a plateia, sem formalidades. Ainda mais em se tratando de um show de aniversário. Vamos ver o que vai acontecer.
Sem formalidades, tudo no improviso e com o carisma e a humildade de quem ainda toca em bailes pelo Interior do Rio Grande do Sul, Yamandu concedeu uma entrevista a Zero Hora. Confira!
Você saiu do Rio Grande do Sul em 1998 para ganhar o mundo. Tua música é conhecida na Europa e até na China. Como se sente quando volta a Porto Alegre?
Sempre fui muito gaúcho, ligado às minhas raízes. Sempre soube de onde vim e tive orgulho. O povo gaúcho é um povo aguerrido, que tem características de um povo de fronteira. Voltei a ter uma casa em Porto Alegre há mais ou menos um ano. Minha mãe mora em Porto Alegre, ela divide o tempo entre Porto Alegre e Lisboa. E meu irmão mora com ela. Nós temos nosso apartamento no Menino Deus, onde fica uma base minha, com estúdio e uma churrasqueira, claro. Então a minha base no Brasil é Porto Alegre. Estou gostando de passar temporadas aí.
Depois de Porto Alegre, vou à Patagônia para um evento privado. Depois faço concertos no Paraguai. No dia 30 de março, faço o último concerto no Brasil e volto para Paris, pois vou tocar com uma orquestra no Interior da França. É uma vida de muita viagem. Neste ano que passou, dei quatro voltas ao mundo.
Em 2024, publicou sua primeira biografia (Yamandu Costa – Violão Sem Fronteira, disponível apenas em e-book e que deve sair no formato físico em março de 2025).
Prefiro dizer que é um autorretrato feito pelo Ricardo Viel, um jornalista que mora em Lisboa há muitos anos. É um pouco do início da minha história com minha família, para quem tem curiosidade de saber como foi. É o primeiro livro sobre a minha vida. No início, fiquei meio reticente, porque me acho muito novo para ter uma biografia.
Isso é curioso: tu é muito novo, está fazendo 45 anos, e já é considerado um dos maiores violonistas do mundo. Como lida com essa fama?
Não acredito muito nisso, não me convenço. A fama é subjetiva, só existe para quem te conhece. Nunca fui deslumbrado. E como sou um músico que viaja o mundo, sei que isso é muito subjetivo de fato. Você pode ser conhecido dentro de um determinado nicho. Os artistas da televisão, por exemplo, são conhecidos em seus países. Você não conhece uma celebridade russa, né? É como diz a letra do tango: la fama é puro cuento. A fama é puro conto. Quem acredita na fama a princípio já se equivoca. Usando essa artimanha, acabo me protegendo um pouco.
Ouça o músico falando sobre fama:
Mas a tua música é conhecida inclusive na Rússia.
Bom, neste ano que passou fui para lá, mas é uma coisa de nicho, algo dentro dos festivais de violão, que acontecem no mundo todo. Dentro deste ambiente, consigo circular por todos os cantos do mundo. Isso é muito bom. E fazendo uma música atemporal que sempre acreditei, me criei ouvindo e admirando esse estilo. Algo mais intelectual, culto, mas com todo o coração.
Fala um pouco de quando começou a se apresentar com teus pais no grupo Os Fronteiriços, ainda na infância.
A gente se mudou de Passo Fundo a Porto Alegre em 1984. Eu tinha 4 anos. Eles tinham um grupo musical chamado Os Fronteiriços. Muito engraçado, porque esse nome acaba permeando toda a minha vida artística, sendo esse músico nascido em um estado fronteiriço, tendo muita influência da música argentina e depois levando para o mundo o violão sem fronteiras, que, inclusive, é o nome dessa biografia que está sendo lançada. Ali foi o começo da história. Foi num bar que se chamava Pulperia, o nascimento do movimento de nativistas gaúchos de grandes artistas, toda uma efervescência cultural que aconteceu em Porto Alegre no início dos anos 1980, e sou filho desse fogo todo. Comecei ali, como cantor mirim, dentro do grupo do meu pai, da minha mãe e meus tios.
Quando começou a tomar aulas de violão com teu pai?
Nunca comecei nada. Quando você nasce num caldeirão musical, você não começa. Você está ali, faz parte daquilo. Se você ajuda, se começa a ter mais interesse musical, acaba se sentindo mais valorizado. A música é um fator inclusivo. É uma coisa até louca poder falar disso. Poucos sentimentos na vida são tão fortes quanto conseguir fazer música com a tua família. É algo muito entusiasmante. Me criei ajudando a minha família a sobreviver dentro desse ambiente musical.
Teus pais não eram ricos, certo? Eram pessoas simples que gostavam de música.
Gente humilde que vivia animando bailes, festas, rodeios, eventos no Interior do Rio Grande do Sul. Eles se mudaram para Porto Alegre para tentar ter mais visibilidade. E para nos dar uma formação um pouco mais ampla, um cenário com mais informação. A minha formação foi basicamente essa.
Quando foi que tu ficou vidrado no violão?
Com sete anos, vi o Lucio Yanel, grande violonista argentino, tocar pela primeira vez. Ele frequentava a casa da minha família. Ele foi o fundador dessa escola do violão gaúcho, da qual sou um propagador, assim como vários outros gaúchos, como Maurício Marques, Marcello Caminha e tantos outros. Quando vi o Lucio tocar, fiquei enlouquecido pelo instrumento. Mergulhei nessa vontade de me superar e de tentar tocar como ele. Foi aí que comecei a me desenvolver.
Com nove anos, tive um salto, consegui tocar coisas mais difíceis. Foi algo que fui aprimorando diariamente. Não é uma arte que tem um ponto de chegada. A música é uma arte de eterna procura.
Tu largou a escola muito cedo, na quinta série. Como tu era em sala de aula?
Bom, meu pai era um sujeito bem diferente. Ele nunca gostou das formalidades, nunca gostou de política, de religião, de doutrinas. Ele acreditava no talento e na predisposição humana. Ele era um cara de uma ideologia muito própria, um sujeito que pensava por si, intuitivo. E acreditou em mim dessa forma, de uma maneira talvez irresponsável. Mas também me joguei dentro da música de uma forma. Todas as possibilidades que tinha de aprender foram jogadas num caminho só.
Eu era uma criança que vivia no meio de adultos. E minha família não tinha rotina. Meus pais tocavam à noite. A gente tinha um ônibus e viajava pelo Interior do Brasil, não só no Rio Grande do Sul. Me criei dentro de uma empresa de trabalho e me sentia uma ferramenta dentro daquela engrenagem. O mundo infantil, dos meninos da minha idade, era uma coisa muito chata para mim. Não me sentia parte daquilo.
Sou um músico popular, da rua, que segue aprendendo. Uma vida feita nas circunstâncias, no improviso
YAMANDU COSTA
Mas tu chegou a aprender aquelas regras de matemática, aquelas fórmulas de química, essas coisas que toda criança aprende?
Muito pouco. Aprendi a ler e a escrever. Quando chegou na quinta série, já estava bem alfabetizado, então foquei no instrumento. Tem gente que acha isso um absurdo. Não sei dizer se isso foi ruim ou bom. Só sei que foi assim. Me lembro do meu desenvolvimento musical dos 11 aos 17 anos.
E como foram esses teus estudos da música? Tu lia muito?
Tocava e vivia, não tinha muita leitura. Ler só depois, quando comecei a me dar conta que o mundo dos livros também era importante para te libertar da ignorância. Meu pai era muito culto, uma pessoa muito interessante, um cara muito ligado. A gente nunca viveu no limbo. Pelo contrário, vivíamos rodeados de intelectuais, de pessoas de direita, de esquerda, idealistas, gente politiqueira. Dentro de uma fauna humana diversificada.
Quer dizer que até os teus estudos de violão foram muito intuitivos?
Meu pai era um ótimo professor de música, e quando ele queria me ensinar coisas teóricas achava muito chato. Eu queria tocar. Sou um músico autodidata, nem ler partituras direito eu sei. Aprendi a ler música com meu pai, quando era criança, mas nunca usei essa ferramenta. Sempre fui músico de ouvido. E até hoje sou assim. Mesmo as minhas composições para orquestra, preciso que alguém escreva para mim. Não tenho essa formação. Sou um músico popular, da rua, que segue aprendendo. Uma vida feita nas circunstâncias, no improviso.
Ouça o músico falando sobre ser autodidata:
Tu teve contato com a música regionalista muito cedo. Em que momento descobriu os ritmos brasileiros e como incorporou essas sonoridades na tua identidade?
Era a cultura geral que o meu pai tinha. Ele falava: "Filho, se você quer tocar música brasileira, tem que conhecer o choro, tem que conhecer o samba, nosso país é muito grande". Quando tinha 11 anos, viajei com ele de Porto Alegre a Natal, no Rio Grande do Norte. Só eu e ele, no nosso ônibus. Em cada Estado que a gente passava, ele me contava sobre a música daquele lugar.
Minha família, no início dos anos 1980, morou no Recife. Tenho uma foto da minha mãe dançando com o Luiz Gonzaga e o meu pai tocando acordeom no fundo. Fui criado sabendo que pertencia a um país riquíssimo. Sempre me senti um brasileiro, latino-americano. Isso ajudou a minha carreira, sendo um representante de vários lugares. Um representante de um continente latino-americano. O repertório dos meus concertos é muito variado.
Teu pai morreu de aids. Como foi isso?
Foi logo no início da descoberta do AZT, a primeira medicação. Meu pai foi um dos primeiros brasileiros a receber o coquetel. Ele já estava muito debilitado, coitado, não resistiu. Uma morte muito trágica, porque eu estava em plena formação. Nem tinha 18 anos quando ele faleceu, no dia 18 de janeiro de 1997. Fiz 17 logo depois. E foi uma morte que me colocou para a vida. Fui embora do Rio Grande do Sul.
Ganhei dinheiro em alguns festivais, juntei, comprei um violão para o meu mestre Lucio Yanel e fui embora para São Paulo. No primeiro convite que apareceu, botei os peitos n'água, como falam aí no Sul. Foi um tiro na lua e as portas foram se abrindo. O (Renato) Borghetti foi o meu grande padrinho, o primeiro cara que me levou para fora do Rio Grande do Sul.
Não moro em nenhum lugar, moro dentro do meu violão. É um entendimento importante de se ter
YAMANDU COSTA
Algumas críticas dizem que, no início da tua carreira, tu era mais preocupado com velocidade, com o excesso de notas, e só mais tarde começou a tocar com mais sentimento. Como avalia tua evolução como instrumentista?
Acho normal. Cada pessoa tem o seu desenvolvimento. Tem gente que já começa mais maduro, outros vão amadurecendo. A gente tem que respeitar o tempo de cada um. Tive algumas parcerias que foram decisivas na minha formação. Quando gravei um álbum com o Dominguinhos, mudou muito a minha forma de olhar para a música. Ele já tinha mais de 60 anos, era um cara muito maduro e tranquilo, que me mostrou que menos é mais. E nunca me deu conselho. Conselho é muito chato. Ele ia fazendo as coisas e eu ia percebendo.
Sempre são pessoas que mudam o teu caminho, de uma forma ou de outra. Fui muito criticado, e faria as mesmas críticas a mim mesmo. Era muito afoito, tinha muita energia. Fico cansado só de ver os meus vídeos tocando naquela época. Mas não se tem muito controle, né? Faz parte do processo de crescimento de cada um.
Tu se mudou para Portugal em 2019 porque já tocava muito na Europa e viver lá ficava mais prático. Mas também teve outro fator: a situação política do Brasil naquela época estava te deixando um pouco incomodado, não é mesmo?
Não só a mim, né? A qualquer pessoa que goste de cultura. Imagina, um governo que odeia artista, que coisa horrorosa. Aterrorizante que um país como o Brasil, uma potência cultural, vivendo essa tendência contra a cultura, esse crescimento horroroso da extrema-direita no mundo inteiro, esse pesadelo que parece que não acaba. Mas, mais do que isso, eram as circunstâncias da minha vida.
Estava muito cansado de viajar. Era um emergente que vivia no Rio de Janeiro, tendo um padrão de classe média alta, criando dois filhos, dois playboys. Porque o Brasil é tão desigual que ou você cria gente pobre, ou cria playboys. Não existe meio termo. Resolvi dar chance a eles de viverem em um lugar mais humilde, com escola pública, mais equilibrada, e foi uma grande decisão.
Mesmo depois de me separar (Yamandu se separou da violonista Elodie Bouny em 2023, após 16 anos juntos), foi uma grande decisão. E para o meu desenvolvimento, também. Eu já estava com 40 anos. Ou eu saía logo, ou ia me acomodar, e sou muito novo para me acomodar. Você nunca perde um lugar indo para outro. Foi muito bom para a minha carreira no Brasil ter vindo morar na Europa. Não moro em nenhum lugar, moro dentro do meu violão. É um entendimento importante de se ter.
Ouça o músico falando sobre a decisão de viver em Portugal:
De onde vem essa posição quase ideológica de querer ser mais humilde? Porque essa postura é diferente da que se vê na maioria dos artistas. As pessoas querem se colocar no topo da elite.
De ter vindo de uma raiz de gente humilde, mas de gente humilde que sempre teve uma riqueza enorme dentro de casa, que é a música, os amigos. Claro que gosto de dinheiro, de viver bem, tenho meus pequenos luxos, mas nada é mais importante do que a música e nada me emociona mais do que estar cercado de amigos, fazendo música.
Tem um bando de coisas que o dinheiro não compra. Tenho uma vida sem empregados, limpo minha casa – meio caótica e tal. E na época, casei com uma francesa, fomos casados por 16 anos, e a convivência com a família dela foi importante para esse entendimento. Meu sogro valorizava coisas simples, como ouvir boa música, ler bons livros e ter bons papos. Isso ajudou que pensasse dessa forma.
O Rio Grande do Sul é um Estado conservador. Você nunca ficou com medo de perder público por aqui ao criticar o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro?
Não sou um ativista político e a música está acima disso. Mas também nunca tive medo de deixar claro os meus pensamentos em relação a isso. Uma tendência muito clara da música regionalista gaúcha é que ela se cria com personagem de esquerda, libertário, um homem que já nasce de uma mistura, e esse homem depois vai se apegando a valores mais conservadores.
Isso também aconteceu com o gaúcho argentino. Faz parte da formação do gaúcho. Ele começa mais revolucionário e depois vira um sujeito dono de campo, com poder. É um fenômeno natural que a gente tem que conseguir enxergar sob vários aspectos. Como faço uma música livre, nunca dependi desse mercado, então para mim não faz muita diferença. Minhas convicções sempre foram claras, mas nunca agressivas. Nunca falo sobre isso no palco. A manifestação artística é mais sagrada do que isso. Ninguém lembra do nome do prefeito da cidade onde Shakespeare morava.
O tempo melhora com a música. Quando a vida real começa a incomodar, a gente pega o instrumento e vive uma vida um pouco mais aceitável
YAMANDU COSTA
Como é a educação dos teus filhos em relação à música e à arte em geral?
Eles não têm as circunstâncias que tive. Eles têm uma vida normal, uma rotina. Claro que atento para a importância da arte, e eles gostam de música, mas não são ligados muito nisso. Me criei num caldeirão de música e não tive saída. Sou musiqueiro convicto.
Tu tinha vários violões espalhados pela casa quando vivia no Brasil, inclusive no banheiro. Esse hábito se mantém?
Sem dúvida, e cada vez mais. Hoje estava aqui em Madrid e fomos buscar um violão que foi reformado. Sem querer, virei colecionador de instrumentos, adquirindo uns, fazendo acordos sobre outros. Hoje em dia, tenho uma parceria com um luthier espanhol e vendemos instrumentos juntos. Gosto muito de instrumentos e tenho uma coleção em casa. O tempo melhora com a música. Quando a vida real começa a incomodar, a gente pega o instrumento e vive uma vida um pouco mais aceitável.
Tem alguma coisa que tu ainda não descobriu tocando violão?
Um mundo de coisas. Agora estou indo para uma penã flamenca e vou aprender um bando de coisas novas. Essa é a graça do negócio. Nunca ter um ponto de chegada. O presente da profissão, da vida, é não acreditar que sabe de alguma coisa.
Yamandu Costa em Porto Alegre
- Quando: 24 de janeiro de 2025 (sexta-feira)
- Horário: às 20h
- Onde: Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/n°)
- Ingressos: disponíveis no site www.theatrosapedro.rs.gov.br