Eremitas de expressão forte, com os corpos cobertos de fuligem, que permanecem horas e horas meditando. Iluminados. Loucos. Mendigos. Vendedores ambulantes. Traficantes de haxixe. Artistas. Doentes. Harekrishnas. Professores de ioga. Turistas. Peregrinos. Pessoas sem rumo. Vacas, macacos, cabras. Imagine isso tudo junto, em um ambiente inebriante, à beira de um rio sagrado. Bem-vindo à Varanasi. Neste local, onde nenhuma multidão do mundo é comparável em diversidade, o relógio parece estar completamente descompassado.
Há algo místico no horizonte da antiga cidade, fundada há cerca de 2,5 mil anos. E é à beira da "Mother" Ganga – nome carinhoso dado ao Ganges – que encontramos a religiosidade do povo indiano no máximo esplendor, celebrada em cerimônias, sejam elas intimistas ou grandiosas.
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De acordo com a tradição hindu indiana, todos devem se banhar ou beber das águas do Ganges pelo menos uma vez na vida. A crença torna a cidade o destino principal de doentes e idosos, que querem passar seus últimos dias na cidade sangrada, à espera da cura ou da morte. Ao longo do rio sagrado, há inúmeras residências projetadas para acomodar os moribundos, assim como templos e escolas de ioga.
Nas margens, há dezenas de ghats, nome dado às grandes escadarias que, segundo a tradição, representam a ligação entre o terrestre e o divino. Cada um deles, construídos no século 18, têm um nome e uma função especial, sendo também palco de eventos religiosos. No maior deles, no Dasaswamedh gath, perto do templo Kashi Vishwanath, por exemplo, uma multidão se reúne todos os dias para participar do Aarti, ritual religioso hindu que ocorre quando o sol se põe. Não é preciso ser hinduísta para participar e se sentir tocado pela música e vibração do ambiente. Basta deixar o som e a energia fluírem.
Da celebração ao Ganges é possível seguir para um ambiente mais, digamos, pesado. É o caso do Manikarnika gath, um crematório a céu aberto que funciona 24 horas por dia para dar conta da demanda. Ali, cada corpo ganha a sua fogueira e é necessário pagar pela cremação. Tirar fotos dos corpos é proibido, é preciso respeitar. Mas, ao invés de tristeza, o que se percebe nas cremações é melancolia. Em geral, os indianos têm uma relação diferente com a morte, bem distinta da nossa, ocidentais.
Um pouco mais adiante, para os menos favorecidos, há outro "burn" ghat, gratuito, onde todos os corpos são queimados em uma mesma fogueira comum. Por conta de uma lenda da purificação de pecados, é uma honra para os hindus ser cremado e ter as cinzas atiradas no Ganges.
À beira desse local sagrado também é recomendável não se fazer nada. Basta estar. Impossível não experienciar um longo momento de introspecção e observação. É bonito olhar as crianças jogando críquete, gurus "orientando" turistas, a prática de ioga e a contemplação, que parece interferir o tal (des)compasso do tempo.
Varanasi também é terra de conhecimento. Shiva, um dedicado motorista de tuk-tuk, levou-me para percorrer o bonito campus da universidade de Banaras Hindu. Há belos prédios, templos e estudantes esticados sob a sombra das árvores. Nela, há uma faculdade de Ayurveda, a medicina clássica indiana. Em sânscrito, significa conhecimento da vida.
O Sânscrito, umas das 23 línguas oficiais da Índia, tem mais de 3 mil anos e sua literatura abrange temas desde o erotismo do Kamasutra até o misticismo do ioga e da meditação, passando por matemática, astronomia, medicina, política e até a doma de elefantes.
Shiva sugeriu que eu fosse a Sarnath, uma cidadezinha a 10 quilômetros de Varanasi, um local de peregrinação de budistas e de buscadores da Verdade. Foi nesse local que Buda deu o seu primeiro ensinamento.
A localidade é um importante complexo religioso, com templos, estupas, estátuas, lagos e jardins, onde impera a flor de lótus, um dos símbolos do budismo. Foi lá que surgiu a imagem iconográfica de Buda, meditativo, sentado em posição de lótus. Para quem busca meditar ou compreender melhor o budismo, o local é imperdível.
Orgulhoso, Shiva circulou pela cidade que lhe garante o sustento da família. Embora não saiba ler, fala três línguas, aprendidas nas andanças da vida. Ao final do passeio, mostrou-me um livro de anotações, com mensagens que recebeu de outras turistas. Pediu que lesse. Eram recados de gratidão, assim como o que deixei. Shiva emocionou-se.