Antes que os primeiros raios de sol surjam no horizonte, uma série de materiais já está organizada na traseira da caminhonete branca. A equipe de pesquisadores verifica os últimos detalhes para, então, embarcar rumo à beira da praia. Passa das 5h30min de quarta-feira (22) quando o veículo acessa a faixa de areia em Imbé, no Litoral Norte.
É o ponto de partida para mais um monitoramento realizado pelo Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar), vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ao longo de 80 quilômetros até Torres, os pesquisadores vão registrando os animais mortos encontrados na beira da praia.
A atividade ocorre no Litoral Norte desde 2012, mas somente a partir de 2017 passou a ser realizada também durante o verão. Semanalmente, equipes percorrem as faixas de areia entre as localidades de Itapeva, em Torres, e Dunas Altas, em Palmares do Sul. O trecho totaliza 130 quilômetros de extensão e é dividido em duas áreas: norte (Imbé-Torres) e sul (Tramandaí-Palmares do Sul). A cada semana um dos trechos é percorrido.
Maurício Tavares, biólogo do Ceclimar e doutor em Biologia Animal, explica que a saída ocorre bem cedo para não atrapalhar o movimento de veranistas na faixa de areia. Também ressalta que, nessa época do ano, as prefeituras costumam recolher os animais mortos com maior frequência, o que pode diminuir a quantidade de carcaças encontradas.
Como funciona o monitoramento
Na última quarta-feira, quando a reportagem de Zero Hora acompanhou a ação, o primeiro animal foi encontrado depois de mais de uma hora de percurso, às 7h04min, já em Capão Novo. Ao localizar uma carcaça, a equipe desce da caminhonete para realizar o trabalho de análise e registro.
Além de Tavares, Cariane Campos Trigo, bióloga do Ceclimar e mestre em Biologia Animal, e Matheus Wolff Massalai, graduando em Biologia Marinha pela UFRGS e bolsista do Museu de Ciências Naturais (Mucin) da instituição, participaram da atividade. A especialista ficou responsável por registrar os dados de cada ação, enquanto o estudante ajudou o biólogo a fotografar os animais e a coletar algumas amostras.
— Essa é a pardela-preta, do grupo dos albatrozes e petréis. Identificamos que é desse grupo por causa do bico dela. A narina dela é tubular. Nós achamos várias na semana passada, inclusive algumas vivas na região de Mostardas. Essa daqui tem o ano todo, é uma ave migratória — explicou Tavares, enquanto analisava o animal na faixa de areia.
Spray azul
Após o registro, Massalai marcou o animal com tinta spray azul. Esse processo garante que os pesquisadores não contabilizarão a mesma carcaça duas vezes. Na maioria das vezes, a equipe não retira o bicho da beira da praia — a exceção fica por conta de espécies incomuns, que estejam em fase de decomposição inicial ou que façam parte de alguma pesquisa específica.
Na sequência, a equipe localizou uma tartaruga verde, já em estado avançado de decomposição. Quando registram esse tipo de animal, os pesquisadores também medem a largura e o comprimento do casco. A encontrada na quarta-feira tinha 59 centímetros. De acordo com Tavares, é incomum achar uma desse tamanho na região:
— Normalmente, as que ocorrem aqui são menores, têm uns 40 centímentros. Essa aqui está em estágio quatro de decomposição, que é o mais avançado e o que dura mais tempo.
Em função disso, os pesquisadores decidiram coletar o crânio e a mandíbula do animal, além de uma amostra de tecido para DNA e um osso do braço, que ajuda a determinar a idade estimada.
— Mais ou menos uns 15 a 20 anos ela devia ter. A longevidade das tartarugas marinhas é parecida com a nossa, uns 70 ou 80 anos. Então, ela era jovem, mas não tão jovem como as que estamos acostumados a encontrar. É a única espécie que é herbívora quando adulta, então quando está na fase de 30 a 40 centímetros ela está trocando a dieta, e confunde o plástico com o alimento, e acaba morrendo por causa disso — acrescenta Cariane.
No trajeto até Torres, a equipe registrou outros sete novos animais, repetindo o processo de fotografar, anotar dados e, quando necessário, coletar amostras. Além disso, verificou algumas recapturas — termo utilizado para se referir às carcaças localizadas em monitoramentos passados. Ao encontrar um animal que já foi contabilizado, os pesquisadores apenas reforçam o spray azul, que pode ir sumindo com o passar das semanas, para garantir que não seja erroneamente contado como uma nova carcaça.
Dados históricos
De 2012 a 2023, o Ceclimar percorreu mais de 21 mil quilômetros nas praias gaúchas, realizando 344 monitoramentos. Nesse período, foram registrados cerca de 22,5 mil encalhes de animais, sendo mais de 18,5 mil aves, 2,4 mil répteis e 1,5 mil mamíferos.
A espécie mais registrada é o pinguim-de-magalhães (mais de 13 mil), cujas carcaças surgem com mais frequência nos meses de inverno. Em seguida, aparecem a tartaruga-cabeçuda (1.573), o bobo-pequeno (979) e o lobo-marinho-sul-americano (848).
Conforme Tavares, nos meses mais quentes do ano, é comum que mais tartarugas e toninhas (espécie de golfinho ameaçada de extinção) apareçam mortas, devido à interação com a intensa atividade pesqueira na região.
Entre 1º de janeiro e 20 de março de 2017, primeiro ano de monitoramento no verão, foram registradas 77 carcaças de aves, mamíferos e répteis. No ano passado, considerando o mesmo período, foram 160. O Ceclimar não possui dados completos para os verões de 2020 a 2022, devido à pandemia de covid-19. Problemas com a logística também afetaram o serviço em 2023.
— Todas essas estatísticas são números mínimos, sem considerar os animais removidos pelas prefeituras e os informados pelos guarda-vidas através de ciência cidadã — comenta o biólogo, ressaltando que as lacunas na amostragem atrapalham uma avaliação linear sobre aumento ou diminuição.
Já neste ano, somente nas três primeiras semanas, já foram 92 registros: 46 répteis, 41 aves e cinco mamíferos. No primeiro monitoramento de 2025 para o trecho norte (Imbé-Torres) foram contabilizados 28 animais. Já no trecho sul, foram 55 — número considerado alto para o verão. Na atividade de quarta-feira, foram localizadas nove carcaças.
O especialista destaca que o monitoramento constante é muito importante para conseguir entender quais mortes são naturais e quais são causadas pelo ser humano ou em decorrência de pandemias dentro da natureza.
Fazendo esse monitoramento conseguimos ver o que é natural e o que não é. Por exemplo, tivemos agora em 2023 um surto de gripe aviária e rapidamente conseguimos evidenciar o aparecimento de vários leões-marinhos na beira da praia, o que não é uma coisa comum dentro dos registros que fazemos ao longo dos anos
MAURÍCIO TAVARES
biólogo do Ceclimar e doutor em Biologia Animal