“Crianças dependentes e intoxicadas por eletrônicos apresentam tristeza e apatia, alta irritabilidade, baixa tolerância à frustração, desmotivação de viver, com consequências nefastas no desenvolvimento integral.” Isso é o que diz a psicóloga clínica Bianca Stock, que atua há 11 anos no atendimento terapêutico de crianças. Ela fez esse texto-desabafo em uma rede social, e o depoimento viralizou. Foram mais de mil reações e quase 600 compartilhamentos.
A percepção da especialista faz coro a uma pesquisa feita pelo Hospital JK Lone, na Índia. Das 203 crianças entrevistadas sobre sua relação com dispositivos eletrônicos – agora, na pandemia –, 65% delas se mostraram viciadas em aparelhos, não conseguindo permanecer 30 minutos longe de videogames, celulares e tablets. O levantamento divulgado em junho revela que esse comportamento é mais comum em meninos (55%) do que em meninas (45%).
Bianca diz que seu propósito não é demonizar os jogos virtuais. Inclusive, ressalta que uma ampla gama de videogames é educativa e instrutiva para os pequenos. Também não quer responsabilizar os pais:
Esses jogos ativam constantemente o sistema de recompensa do cérebro, e a criança torna-se passiva frente à vida. Ela perde o senso de realidade e poderemos ter uma geração de pessoas que não sabe lidar com as frustrações por ter sido moldada a ser recompensada a todo momento.
BIANCA STOCK
Psicóloga
— Eles estão cansados da rotina imposta pela pandemia e se desdobrando para dar conta de tudo. O que pontuo é que esses jogos ativam constantemente o sistema de recompensa do cérebro e a criança torna-se passiva frente à vida. Ela perde o senso de realidade e poderemos ter uma geração de pessoas que não sabe lidar com as frustrações por ter sido moldada a ser recompensada a todo momento.
O psicanalista Julio Cesar Walz diz que o que mais lhe preocupa não são tanto os jogos virtuais, mas, sim, o excesso de convívio entre adultos e crianças no mesmo ambiente fechado ou restrito, porque o grau de tensão aumenta. Isso porque a escola é, para a criança, a porta de saída do seio familiar e de entrada para o mundo.
— No contexto de agora, a criança não consegue manter sua privacidade e segredos, e os adultos ficam assustados com isso ou aquilo que seus filhos fazem. A escola presencial faz parte do crescimento humano e do processo de desenvolvimento, que implica em afastamento gradual do olhar dos pais para a construção do sentimento de responsabilidade pelas crianças. A tecnologia permite uma imersão em mundos que nos mantêm distantes uns dos outros para que o excesso de convívio não crie muitos problemas que, às vezes, ficam insolúveis — observa Walz.
No contexto de agora, a criança não consegue manter sua privacidade e segredos, e os adultos ficam assustados com isso ou aquilo que seus filhos fazem. A escola presencial faz parte do crescimento humano, que implica em afastamento gradual do olhar dos pais para a construção do sentimento de responsabilidade pelas crianças.
JULIO CESAR WALZ
Psicanalista
Para Denise Steibel, psicóloga infantil, o uso de videogame já era frequente entre crianças e adolescentes, mas a pandemia acentuou essa relação:
— Há um uso excessivo no geral, e, em algumas situações, intoxicação. Os pais precisam estar atentos se a faixa etária do filho corresponde ao jogo. Além disso, o tempo dedicado aos jogos também é algo que deve ser controlado. Quanto mais tempo diante da tela, mais as crianças deixam de interagir com a família, com os brinquedos, de realizarem as atividades escolares, fazer atividade física e outras práticas que são fundamentais para a saúde.
"Tudo virou de cabeça para baixo”, diz mãe
Esse combo de afastamento dos deveres escolares, prejuízo na qualidade do sono, irritabilidade e momentos de confronto foi vivenciado pela advogada Luciana Lopes, 46 anos, com a filha Lara, 10. A guria sempre gostou de videogame, mas tinha outras distrações, pelo fato de morar perto das colegas de colégio e de uma praça – que era ponto de encontro das mães e das pequenas. O comportamento mudou radicalmente em meados de abril. Com a imposição do distanciamento social e o cancelamento das aulas, Lara trocou a praça pelo sofá de casa.
— Tudo virou de cabeça para baixo. Ela se encontrava com as amigas na sala virtual de jogo e ficava ali por horas, de fone de ouvido e conversando. Passava, praticamente, todo o final de semana jogando. Quando terminava as tarefas da escola, saía correndo para o videogame novamente. Passou a dormir super tarde, porque ela pegava o celular para jogar na cama. Aí, impus limites — conta Luciana.
As longas jornadas diante da televisão nos finais de semana tiveram um epílogo. As partidas durante a semana, após a entrega das atividades do colégio, foram cortadas, salvo raras exceções. Surgiram brincadeiras mais interativas, diz a advogada:
— Pulamos corda no pátio, jogamos carta, fazemos coreografias, ela tem praticado a escrita, que é algo que ela gosta, e estamos reforçando a tabuada. Agora, ela descobriu o Harry Potter e me pediu um livro dele para ler. Vi que ela tomou consciência também, amadureceu a relação dela com o videogame. Dia desses negou o convite das amigas para jogar dizendo que ela tinha que fazer o tema do colégio.
Irritabilidade e prejuízo nos estudos
Separar um tempinho para brincar com o filho, enquanto demandas da casa e do trabalho se acumulam, não é tarefa fácil – e não é todo mundo que consegue fazer isso. Equilibrar compromissos tem sido complicado, relata Pâmela Dutra, psicóloga e psicopedagoga:
— Eles (pais) seguiram uma rotina de trabalho dentro ou fora de casa. Ao contrário dos filhos, que permanecem em casa, mas com menos demandas muitas vezes. Vejo que os pais acabam liberando o uso de videogame por não terem opções, e eles também relatam que essa é uma forma de os filhos interagirem com os colegas. Entretanto, esse contato e espaço de interação pode ser mediado.
A especialista aponta que a relação do vício em jogos eletrônicos é dada por uma reação química que acontece em nosso cérebro. Nela, é liberada a dopamina, hormônio que causa a sensação de prazer, de euforia e de recompensa.
— A dependência no jogo provoca a necessidade desses efeitos no organismo. E isso acarreta prejuízos no convívio familiar e social, na saúde mental e física e na aprendizagem.
Denise Steibel acrescenta outras consequências:
— Surge também a irritabilidade quando o jovem ou criança é proibido de continuar jogando e a alimentação correta, às vezes, é deixada de lado em detrimento daquela fase ou obstáculo que precisa ser vencido.
“É temerário falar em intoxicação permanente”
O psicanalista Julio Cesar Walz pondera sobre a realização de diagnósticos na infância, especialmente em relação a comportamentos. Ele resgata como exemplo a preocupação que foi gerada pelos cuidados que as crianças dos anos 1990 tinham com seus respectivos tamagotchis (espécie de animal virtual de estimação). Walz reforça que a preocupação dos pais com ideias ou comportamentos fixos dos filhos se altera ao longo dos anos, porque a criança, naturalmente, se afasta do “vício” do momento.
— Isso não quer dizer não se preocupar para uma questão que parece preocupante. Tudo o que a gente faz tem consequências. Isso sabemos. Mas daí a achar que tudo é perigoso para sempre é outra questão. Não vamos tornar as crianças criminosas só porque gostam de jogar. Digo isso não para minimizar o problema que tem aspectos relacionados à intensidade da luminosidade da tela e da troca do dia pela noite. Por outro lado, quero reforçar a ideia de que o vício é algo da vida humana. Escapar dele necessita muito esforço e se permitir o interesse por outros assuntos — afirma Walz.
O especialista diz que os adultos podem ajudar as crianças tornando a experiência da vida mais múltipla. Contudo, reconhece que isso demanda tempo, paciência e dedicação:
— Estamos em pandemia, o que dificulta um pouco mais a busca de soluções que não sejam caseiras. Ao mesmo tempo, precisamos imaginar que há um outro aspecto a ser refletido: de que o futuro do mundo provavelmente será isso, tudo online. Acredito, sim, que o ponto fundamental entre adultos e crianças seja o respeito e o incentivo de uma vida onde possa existir a construção da diversidade de experiências emocionais e cognitivas, ajudando, assim, as crianças a não ficarem na mesmice das ideias fixas, bem como os adultos.