Apesar de serem os personagens centrais do processo de adoção, os filhos adotivos até pouco tempo não participavam ativamente dos debates sobre o tema. Ainda são raros os espaços na mídia tradicional e na internet em que a voz de quem foi adotado pode ser ouvida. Aos poucos, no entanto, o cenário está mudando – em um movimento que beneficia não apenas os filhos por adoção, mas também pais e outros familiares.
Acabo de lançar pela editora Physalis o livro Vida de Adotivo: a Adoção do Ponto de Vista dos Filhos (176 páginas, R$ 48 à venda neste link e em physaliseditora.com). Com 12 relatos, é a primeira iniciativa do país dedicada a dar voz a adultos que foram filhos por adoção. Foi uma pesquisa que iniciei por motivos pessoais. Cresci em uma família que me cerca de carinho, soube desde a infância que fui adotado, e o assunto nunca foi um tabu na minha casa. Mas sempre escondi de mim mesmo o interesse de saber mais sobre minhas origens.
Próximo dos meus 30 anos, permanecia com a vida estagnada em relação a trabalho e relacionamentos afetivos. Minha saída foi buscar a psicanálise, onde finalmente me dei conta de que, ao encarar meu passado, também estaria vivendo com mais intensidade meu presente. Procurei amparo nos livros e me dei conta de que eram raros os trabalhos que abordavam a adoção sob a ótica dos adotivos. Por isso, acabei escrevendo o livro que queria ler.
Foram oito anos de pesquisa. No meio desse processo, conheci pessoalmente minha mãe e mais alguns familiares de origem, em um processo que me ajudou, inclusive, a me aproximar com mais intensidade dos meus pais adotivos. Também narro essa aventura pessoal no livro, em capítulos dispostos entre os relatos dos filhos que entrevistei.
Vida de Adotivo não é uma projeto isolado. A publicação de um livro como esse só é possível porque o debate sobre adoção no Brasil está alcançando um novo patamar de maturidade. Foi só com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), três décadas completadas em 2020, que a adoção se institucionalizou de fato no país. Ou seja, a primeira geração que cresceu com ampla segurança e amparo legal para falar sobre como é ser um filho adotivo está recém chegando aos 30 anos.
O resultado é a viabilidade de uma série de iniciativas em que a voz do adotado está em primeiro plano. No Instagram, por exemplo, além de @vidadeadotivo, falam em primeira pessoa os perfis @adoteimeuspais e @adotandoumafamilia para um público cada vez mais numeroso e engajado.
E mais livros com relatos devem sair em breve. Ana Amélia Macedo e Solange Diuana, responsáveis pela série Histórias de Adoção, com volumes sobre pais e mãos, estão reunindo depoimentos para uma tomo sobre os filhos.
É preciso que mais iniciativas como essas se consolidem com urgência, pois levantam questões que vão além de um sentimento passageiro de incompletude ou de uma curiosidade caprichosa por conhecer familiares biológicos. O número de tentativas de suicídio entre adotivos é mais de quatro vezes maior do que entre pessoas que não foram adotadas, segundo estudo da American Academy of Pediatrics, de 2013.
Tenho convicção de que, se esse assunto fosse debatido de maneira mais ampla, muitas pessoas não abandonariam a vida para escapar de suas angústias. Famílias podem ser salvas na medida em que o debate se expandir e amadurecer.
Depoimentos no livro
“Como fui amparada, também quero amparar”
Sílvia Letícia Souza viveu em situação de rua até os 12 anos de idade em Porto Alegre e na Região Metropolitana. Passou por um abrigo e foi adotada aos 13 anos. Sílvia é hoje professora. Não guarda mágoa em relação à mãe biológica, que era usuária de drogas e faleceu quando a menina estava no abrigo: “A convivência com a minha mãe de origem me ensinou coisas, e minha família agora está me ensinando muitas outras”.
“Eu já dou aula há sete anos para pré-escola. Por enquanto, só trabalho com ensino infantil, mas posso dar aula para o Fundamental. Na semana passada, prestei um concurso para Sapucaia, por exemplo. Muitas pessoas me ensinaram, me ajudaram. Não tiveram preguiça de me orientar só por eu ter sido moradora de rua. Como fui amparada, também quero amparar. Na Educação Infantil e no Ensino Fundamental, a gente mexe com crianças em situações às vezes mais difíceis do que as que vivi.”
"Percebi a realidade que poderia estar vivendo"
Adriana Coli foi adotada aos sete meses de vida, no interior de Minas Gerais. Hoje, é advogada e vive em Curitiba. Ela jamais reencontrou familiares biológicos, mas deu novo significado ao passado por meio da psicoterapia e de visitas a um abrigo.
"Foi a partir da terapia que comecei a fazer trabalho voluntário em um abrigo. Era em Luiziânia. As primeiras visitas à instituição foram muito dolorosas. Eu chorava muito quando percebia que poderia estar ali na minha infância. Ressignifiquei muita coisa a partir dessa experiência, em relação à minha vida e à minha história. A forma como as crianças eram cuidadas, como interagiam entre si. Aquilo era doloroso, mas também me fez dar um valor imenso à sorte que tive na minha vida. Percebi a realidade que poderia estar vivendo. É meio que um chacoalhão: 'Presta atenção. Não está bom para você?'."
"O adotivo sente que é adotivo"
Jorge Luís Cardoso Pereira foi adotado recém-nascido, em fevereiro de 1977, em Alvorada. Descobriu que é filho por adoção aos 37 anos, iniciando um processo de dar novo significado a vínculos e afetos, que superou com a ajuda da psicanálise. Hoje é ilustrador e realiza oficinas de fanzine com crianças carentes.
"O gozado é que o adotivo sente que é adotivo. As pessoas te olham diferente. Não era o caso da minha mãe. Quando pequeno, creio que recebi muito mais da minha mãe do que minha irmã, por exemplo. Mas no entorno era diferente. Depois, quando descobri a verdade, as coisas se encaixaram, o porquê de algumas coisas. Como de algumas brincadeiras, quando estava sozinho com alguns tios meus: "Tu é filho de negrão? Tu é filho de não-sei-quem? De quem tu é filho?", me perguntavam. São brincadeiras que não fazem muito sentido para quem não sabe, mas que depois vêm à tona de maneira amarga."
"A curiosidade sobre minha mãe aumentou quando fiquei grávida"
Adotada ainda bebê, em 1974, Lia Cecília cresceu em Belém (PA), cercada de afeto. Apesar de saber desde os nove anos que é filha por adoção, jamais manifestou desejo de conhecer familiares biológicos. Só descobriu suas origens na idade adulta, após ler uma reportagem sobre sua tia, Mercês Castro, que buscava a sobrinha desaparecida. Lia é filha de um guerrilheiro do Araguaia, morto em combate. Ela foi apropriada por militares e deixada em um internato para moças. A identidade de sua biológica ainda é desconhecida.
"A curiosidade sobre minha mãe aumentou quando fiquei grávida. Quando perdi minha filha, foi uma dor que não desejo para ninguém. Sete anos já se passaram, mas ainda sinto. Toda vez que dou entrevista sobre minha origem, choro muito, porque imagino a situação. Prenderam minha mãe, tiraram a filha dos braços dela. Eu era um bebê, e a última vez que minha mãe me viu foi nos braços de um soldado, sem saber se eu ia viver, se iam me matar. Mas eu tenho certeza, eu te falo como mãe, que a intenção dela foi me proteger, que Deus me protegesse e que eu fosse feliz. Ela nunca pensou nela. Ela pensou em mim naquele momento. Assim como eu daria minha vida para minha filha estar viva agora.
Vida de Adotivo
De Alexandre Lucchese
Physalis, 176 páginas, à venda em bit.ly/vidalivro e physaliseditora.com.