A Itália é o país que apresenta o maior número de mortos pelo coronavírus. Até agora, a localidade contabiliza 3.405 vítimas pela nova pandemia, superando até mesmo a China, epicentro da doença, que tem 3.130 mortes registradas. Mas, mesmo nesta terra árida, sementes de solidariedade são plantadas, florescem e crescem. A orientação de prática do chamado distanciamento social — política que prega a restrição de contato entre as pessoas, sugerindo que elas fiquem em casa e que evitem aglomerações — pode ter afastado fisicamente as pessoas. Por outro lado, fez com que a sociedade criasse mecanismos de aproximação, solidariedade e auxílio mútuo.
Na web, é possível ver vídeo de diversos italianos cantando juntos das sacadas de suas janelas e exemplos de jovens que se ofereceram a fazer compras para os idosos, prática vista também na Espanha. Em Porto Alegre, diversas pessoas que não fazem parte do grupo de risco de contaminação pelo coronavírus também têm se disponibilizado a fazer compras de supermercado e a irem à farmácia para aqueles que são idosos, diabéticos, hipertensos e quem têm insuficiência cardíaca, renal ou doença respiratória crônica.
Angelo Brandelli, professor do programa de pós-graduação em Psicologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) faz uma analogia, salvas as devidas restrições, com a epidemia de HIV registrada nos Estados Unidos na década de 1980. Ele observa que a primeira medida do governo na cidade de Nova York foi o fechamento de bares e espaços de convivência. Contudo, as pessoas ainda frequentavam espaços de grande probabilidade de comportamento de risco:
— O que foi definitivo para a mudança de comportamento das pessoas foi quando as comunidades passaram a entender o quão importante era o autocuidado e o cuidado com os outros. Aí, entrou em cena a política de solidariedade. Por meio do acesso à informação sobre a doença, as pessoas passaram a entender que aquela doença concernia a todos e que somente juntos eles a superariam.
O psicólogo destaca ainda que, neste caso nova iorquino, a mídia e o governo local, assim como a Argentina com o coronavírus, incentivaram a solidariedade entre os indivíduos. Letícia Campos, mestranda em psicologia social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), faz coro à afirmação de Brandelli no que tange à conscientização das pessoas sobre a responsabilidade social e à necessidade de cuidado com o próximo em casos de situações extremas. Porém, ela pontua que esta solidariedade é, também, estratégica.
— As pessoas entenderam que os mais velhos precisam de ajuda, seus familiares idosos precisam da solidariedade dos outros. Esta é uma tática de sobrevivência, porque o adoecimento da população idosa nos afeta diretamente. É um se dar de conta meio egoísta, mas que, ao mesmo tempo, nos permite praticar a solidariedade e a proteção do outro. O vírus nos obriga e ensina a ser colaborativos — diz.
Bons exemplos se alastram pela Capital
A jornalista Alexandra Zanela, 38 anos, moradora do bairro Centro Histórico, conta que viu na televisão que um casal jovem de italianos colou no elevador do prédio um bilhete dizendo que estavam dispostos a fazer as compras daqueles que não podem sair na rua em função da pandemia. A atitude reverberou na mente de Alexandra, que pensou na quantidade de idosos que moram no mesmo prédio que ela no Centro Histórico, em Porto Alegre.
Na segunda-feira (16), ela escreveu a próprio punho um bilhete no qual detalhava que poderia fazer as compras de supermercado e a ir à farmácia. Fixou o recado no elevador.
— Eu estou de home office desde a semana passada, não faço parte do grupo de risco e tenho muitos vizinhos idosos. É melhor que eu faça isso por eles, que eu saia para que eles fiquem bem. Agora, é o momento de pensar coletivamente. Duas vizinhas me interfonaram para agradecer a oferta de ajuda — conta com alegria.
Alexandra postou a foto do bilhete nas redes sociais e relata que diversas pessoas entraram em contato com ela para dizer que estão reproduzindo a atitude em seus condomínios:
— Uma menina de Santa Cruz e um homem de Curitiba vieram falar para mim que estão fazendo a mesma coisa.
A nutricionista Clarice D'Mutti, 51 anos, se juntou a esta corrente e, no início desta semana, colou uma folha de papel na entrada do prédio oferecendo ajuda para fazer as compras dos velhinhos do condomínio:
— Um dos meus vizinhos de 80 anos bateu na minha porta para agradecer e queria me dar um abraço. Disse que o abraço eu não poderia receber, mas a listinha de compras dele, sim. Neste momento, meu foco é no zelo. A gente precisa um do outro neste momento.
Moradores do bairro Menino Deus, na Capital, os professores Mário San Segundo, 37 anos, e Daniela Fávero, 34 anos, seguiram os exemplos anteriores e se colocaram à disposição dos vizinhos, que estão em idade avançada. Com intuito de evitar que o prédio se torne um foco da doença e resguardar a saúde dos idosos, eles colaram cartazes e receberam ajuda de vizinhas que também se ofereceram a buscar as compras de carro. A esperança do casal é que o espírito altruísta que se vê agora perdure:
— Nós temos o privilégio de poder fazer home office, mas há muitas pessoas no Brasil em situação de vulnerabilidade extrema. Espero que um dos saldos positivos desta pandemia seja o retorno deste sentimento de solidariedade em contraponto ao egoísmo, não somente em momentos de crise, mas em nosso cotidiano.
Maurício José Alves, o Mano, um dos integrantes do Cozinheiros do Bem — iniciativa que distribuiu semanalmente marmitas para 700 pessoas em situação de rua da Capital —, explica que, para evitar aglomerações, a ONG passará a distribuir, na semana que vem, kits com álcool gel, máscara, escova de dente, creme dental, água e sardinha ou macarrão instantâneo. Os locais contemplados serão o Centro de Porto Alegre, bem como nos viadutos Conceição, Obirici e do Brooklin.
— Adaptamos nossa forma de atuação, mas as pessoas não ficarão desassistidas. Entregaremos o kit e uma palavra de amor — diz ele.
Além da entrega destes itens essenciais para enfrentar a pandemia, Mano atua na ONG Anjos do Bem, que conseguiu adquirir um aparelho respiratório para Aline Camargo, 26 anos. Ela é moradora de Esteio, na Região Metropolitana, e sofre com paralisia cerebral, o que implica problemas respiratórios e motor.
— Agora, com esse respirador, ela poderá ficar em casa, não precisará ir ao hospital, ficar exposta ao coronavírus e sobrecarregar o sistema público de saúde.
Adaptação ao covid-19
A proliferação da covid-19 acrescentou novas angústias ao consultório da psicóloga Flávia Pires. O isolamento social preconizado pelos médicos, contudo, não impediu a especialista manter o atendimento de todos os pacientes. Desde quarta-feira, Flávia tem recorrido a videoconferências para as sessões de terapia. As únicas exceções são as crianças de 4 a 12 anos, cuja atenção especial torna imprescindível a aproximação física.
— As crianças são os únicos pacientes que sigo recebendo no consultório. Não tem como atender por vídeo. Mas os cuidados com higiene são ainda mais intensos. Passo álcool gel por tudo e converso a uma distância segura. Não posso deixá-las sem atendimento, sobretudo num momento desses — afirma.
Segundo Flávia, a pandemia do novo coronavírus se tornou assunto recorrente nas sessões, não só pela onipresença do tema no nosso cotidiano, mas sobretudo pelas preocupações que motivam nas pessoas. Muitos pacientes têm relatado o temor de perder familiares e amigos.
— As crianças estão muito ansiosas e não podem sequer abraçar um avô, uma avó. Muitos só se falam por Skype. Os adultos também estão mais preocupados — relata.
Para ajudar o Cozinheiros do Bem
Eles precisam de doação de máscaras, álcool, lenço umedecido, papel higiênico, alimentos de consumo prático, escova de dente e creme dental. O Mano busca as doações, para agendar a coleta ou ter mais informações basta ligar no contato: (51) 9 8686-8686.