A caixa de papelão desmontada, retirada do lado de um armário e posta sobre o piso da oficina mecânica, é o primeiro indício de que o show vai começar. Eufórico, Fritzz abana o rabo, late, salta sobre um pedaço de papel jogado no ar. Segundos depois, deita sobre o papelão junto a Bidu e Diana. O trio tem estilo: está de patas cruzadas de modo sincronizado, um ao lado do outro.
– A direita sobre a esquerda – manda Ernesto Schwert, o "pai" deles.
O que acontece depois é de impressionar.
Descendente de alemães, o mecânico de 69 anos nasceu e se criou em Restinga Seca, na Região Central. Desde cedo conviveu com animais, porém, não exatamente como gostaria. Na lida com o pai, aprendeu a domar cavalos da pior maneira: à base da violência. À época, relata, pegava um animal xucro e batia até que bichano se rendesse pelo cansaço.
– Isso não amansava, só os deixava traumatizados – relembra.
Os cavalos reagiam com tanto medo ao som do relho que não eram incomuns acidentes com as carroças. Como o barulho se assemelhava ao do zumbido de abelhas ou moscas, cada vez que ouviam esses insetos os equinos saíam em disparada, derrubando quem quer que estivesse sobre o veículo tracionado.
Os cães da família eram repreendidos com laço. Aos 12 anos, ainda repetindo esse jeito cruel herdado do patriarca, Ernesto já ensinava. Uma fotografia em preto e branco eterniza o momento em que o então menino ostentava uma gaita no colo e seus dois cachorros, Táxi e Totó, sentados ao seu lado, com o traseiro no chão e as duas patas dianteiras empinadas.
Como nunca se conformou com aquela agressividade, Ernesto queria achar outra solução para domá-los. Mas, guri sem muitas referências, tinha a dúvida: como fazer isso?
A resposta veio anos depois, quando assistiu a um programa de televisão nomeado Doma Racional, no qual um homem, com a ajuda de uma mangueira, mas sem ameaçar seu cavalo, conquistava a confiança do animal.
– A diferença é muito grande, pois o cavalo é maior, portanto, o medo dele em relação ao homem é menor. O cão, quando nasce, tem enorme receio do homem. Eles gostam muito de crianças, porque se equiparam no tamanho. Então, pensei: preciso achar um motivo para conquistar a confiança deles de forma racional e com carinho – explica.
Foi assim que matutou:
– Vivemos um primeiro mundo, que é a barriga da nossa mãe; um segundo, que é a vida fora do útero; e um terceiro, e último, que vem após a morte. Quando viemos à luz, nos desligamos da genitora pelo umbigo. Logo, esse seria o ponto mágico de reconexão com o animal.
Deu início aos testes. Pôs os cães, ainda filhotes, em um local mais alto, onde pudessem se sentir iguais em tamanho. Usava, geralmente, uma escada ou um sofá. Colocava uma música suave, preferencialmente dedilhada no piano. Com as mãos ensalivadas, massageava o umbigo dos cachorros.
– Esse seria o primeiro contato real entre o dono e o cão, pois ele vai lamber o local e vai ser a comunicação da minha saliva com a dele, meus hormônios com os dele. Quando senti que o cão relaxou, foi uma sensação maravilhosa. Fui aperfeiçoando com o polegar na orelha deles também. Fazia todas as noites, três vezes. No quinto ou no sexto dia, o cachorro já estava no local esperando a massagem. É o primeiro passo de uma grande conquista. Aí, pode começar a pedir tarefas que ele faz por você. É emocionante.
Foi o método de aproximação que Ernesto desenvolveu. Para ele e o trio Fritzz, Bidu e Diana – e os outros cães que teve antes deles –, funcionou.
De Printz a Fritzz
Printz, um pastor alemão, ironicamente, só entendia a língua alemã. Andava para cima e para baixo de carro com Ernesto e só deixava outras pessoas entrarem nos automóveis que elas próprias deixavam para conserto depois que o dono falava, em alemão, que se tratava de um amigo.
– Se a pessoa desembarcava, não embarcava de novo. Eu tinha que repetir (em alemão): “É meu amigo, vai viajar comigo”.
Na sequência, veio o boxer Caco. E, depois, Bidu, presente de um compadre. Cruza inusitada de uma rottweiler com um golden retriever, Bidu havia sido vendido para uma pessoa que não honrou o pagamento. O homem pegou o peludo de volta e insistiu com Ernesto. Que relembra:
– Eu disse: “Eu não quero, eu não conheço essa raça. Não vou querer”. Passou um dia, dois, e ele botou o dedo no meu nariz: “Compadre, vai lá, pega ele, leva para a tua casa e ensina que ele vai te dar muita alegria”.
Foi assim que Bidu, mais tarde conhecido nas redondezas como o “cão mecânico”, chegou a Ernesto.
– Ele nasceu em 18 de março de 2007. Veio para cá com quatro meses, já tinha passado dois com o outro dono – conta, com a precisão que lhe falta para lembrar outras informações, incluindo a idade da filha, Viviane.
Usando a mesma técnica das carícias no umbigo, não demorou muito para o mecânico arrebatar o coração de Bidu. E o gigante se tornou o braço direito na oficina instalada ao lado de casa, em meio a um jardim florido e colorido por canários e pintassilgos. Hoje, o auxiliar com fuço esbranquiçado pelo tempo não deixa o pai carregar nada sozinho. Prontifica-se na hora e auxilia no transporte – até mesmo de um macaco hidráulico de sete quilos.
Não muito tempo depois, Ernesto ficou eufórico quando soube da nova gestação da rottweiler Capitu, mãe de Bidu. Dessa vez, nasceram quatro filhotes, dois machos e duas fêmeas. Um dia, atordoada pelas mamadas da prole, a fêmea matou os dois rebentos, fazendo com que as cadelas fossem retiradas às pressas. Cissa e Diana cresceram graças à alimentação com uma mamadeira. Essa última foi dada de presente a Ernesto, atendendo ao seu pedido.
Para evitar a cruza entre irmãos, ao completar seis meses Diana foi castrada e, aos poucos, começou a seguir os passos do mais velho, ajudando nas tarefas da oficina.
– Diana, liga o compressor para o papai – ele pede.
Lá vai a preta de oito anos puxar o cabo adaptado do equipamento.
– Diana, desliga o compressor. Desliga! Está muito barulho.
Ela dá meia volta e puxa outro cabo, fazendo cessar a máquina.
– Muito bem. Muito obrigado – agradece Ernesto, diante da cachorra sentada lhe dando uma das patas.
Cinco anos atrás, Ernesto resgatou, em uma estrada local, mais uma cachorra. Branca com algumas manchinhas escuras, Chica foi encontrada em pele e osso:
– Era um esqueleto!
A vira-lata era quem faltava pra dar seguimento ao legado do primogênito, já bastante cansado pela idade. Bidu cruzou com Chica e o resultado foi Fritzz, o mais novo da turma, com quatro anos. O olhar agitado e o rabo inquieto denunciam, de cara, sua pouca idade – e dificultam a pose para foto.
Matemática em alemão
Passava das 15h de uma segunda-feira de dezembro de céu carregado quando a reportagem de GaúchaZH chegou à oficina. Ernesto esperava ansioso pela chuva prometida. Assim que a equipe desembarcou do carro, foi farejada pelo trio. O mecânico colocou o chapéu risca de giz na cabeça e, prontamente, começou a mostrar por que Bidu, Diana e Fritzz são motivo de curiosidade de visitantes que desembarcam em Restinga Seca só para vê-los. Mas, antes de demonstrar as habilidades de seus filhos, passou uma toalha molhada em Bidu, que padecia com o calor de 35°C, impossível de ser vencido pelo ventilador instalado no piso.
Feito o agrado, pegou a caixa de papelão desmontada, esticou-a no chão enquanto o caçula dava pulos e gritos de alegria. Depois de deitá-los lado a lado e cruzar as patas de todos, Ernesto esticou o braço e tirou de cima do armário que abriga seu computador um prato preto recheado de ração e pontas de ossos “ricos em ômega-3”, como ele diz. Colocou cuidadosamente um grãozinho do alimento na pata esquerda. Começava ali a aula de matemática. Detalhe: a lição é bilíngue.
– Eu vou fazer uma soma em alemão para vocês com final 10, né?! Depois, vou fazer subtração. Prestem atenção, papai vai somar agora quatro mais seis em alemão. Der Vater zählt jetzt von eins bis zehn. Warten! Eins, zwei, drei, vier, fünf. Warten! Fünf, sechs, sieben, acht, neun, zehn. Der Vater tut jetzt zusammenrechnen. Vier nochmal sechs auf Deutsch. Eins, zwei, drei, vier, nochmal zusammenrechnen, eins, zwei, drei, vier, fünf, sechs. Es geht zehn.
A pedido de GaúchaZH, o cálculo é repetido, desta vez em português. Um, dois, três, quatro. Somando um, dois, três, quatro, cinco, seis. Total: 10 – o resultado é a deixa para que o trio abocanhe o mimo.
Depois da soma, veio a subtração e uma reza de proteção à equipe.
– Em primeiro lugar, agora, nós vamos fazer uma oração. Atenção Diana, Fritzz, Bidu! Obrigado, Senhor, por mais um dia. E abençoa as nossas visitas. Amém – o termo religioso que finaliza a frase é o sinal de que a ração disposta sob as patas esquerdas dos peludos pode ser comida.
O trio ainda deu uma palhinha das aulas de educação de trânsito que faz em escolas da região. Sob comando de “dormir”, eles se reviram de lado no mesmo papelão esticado no chão da oficina. Ernesto começa a explicar sobre a importância de os pedestres usarem a faixa de segurança e de os motoristas a respeitarem.
– Aí vem um motorista bêbado, mal-educado, e o que acontece? O Bidu morre atropelado, o Fritzz morre atropelado e a Diana morre atropelada – ele diz, e, como se um carro passasse por cima deles, os cães se viram, um por um, de costas para o chão e com as quatro patas para cima, em um movimento sincronizado.
– Deu, pode ressuscitar! – diz o “pai”, trazendo o trio “de volta à vida”.
Preocupado com esse tema, Ernesto usa os cães atrair a atenção das crianças. Acredita que só elas são capazes de mudar a violência no trânsito. Escolas já foram até a oficina, e os cães também visitam instituições. Nas aulas, Bidu, Fritzz e Diana carregam entre os dentes plaquinhas com ilustrações que vêm acompanhadas de falas do tutor sobre a importância da manutenção do veículo antes de pegar a estrada, do uso do cinto de segurança (sobretudo no banco traseiro) e da combinação perigosa de álcool e direção.
Bastante envolvido com as questões da comunidade, Ernesto e a trupe ainda ajudam a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Restinga Seca. Na oficina, ao lado do pote de recompensas, está um cofrinho pesado, recheado de moedas e doações voluntárias que os visitantes fazem – devidamente conduzidos pelos cães.
Sesta após a borrachinha
– Traz a chave combinada para o papai, Fritzz. Alicate. Martelo. Martelo, Fritzz. Martelo. Hammer, Fritzz.
Com paciência, Ernesto ensinou aos três o nome de cada ferramenta que usa no dia a dia – em português e em alemão. Às vezes, é preciso muita calma para conseguir a atenção, especialmente do mais novo, que se perde com qualquer ruído ou movimento diferente. O primogênito, além de saber com precisão o que é uma chave combinada, ainda pega o celular de Ernesto de cima de uma bancada e o alcança quando toca.
A parceria se estende à vida doméstica. Os cães ainda ajudam na lida com as galinhas – levam ração e avisam sempre que uma mais saidinha está fora da cerca –, trazem o jornal, separam o lixo, carregam lenha e, claro, se divertem muito.
“Borrachinha” é a senha da diversão do trio, que pula, corre, late toda vez que o mecânico toma nas mãos uma vara de madeira em volta da qual enfia três borrachas do tamanho de uma bolinha de tênis e as lança pelo gramado. Bidu, mesmo cansado, consegue forças para correr atrás do brinquedo enjambrado. Mais jovem e magro, Fritzz dá saltos enormes para catar a borracha no ar.
Quando a diversão acaba, é hora de sestear. Empoleirados em um quartinho nos fundos da casa onde Ernesto vive com a esposa, Vera e a filha Vanessa (ele ainda tem Viviane e Leandro, que o ajuda na oficina), Ernesto deita na cama de solteiro, Fritzz sobe ao seu lado, Bidu e Diana esticam-se no chão mesmo. Ali, meditam e dormem ao som do rádio. Sabem que o dia é longo e que as tarefas só cessam por volta das 23h, quando Diana apaga a luz da oficina.