Por Robson de Freitas Pereira
Psicanalista, membro da APPOA
"A verdade tem estrutura de ficção"
Jacques Lacan
Changez é o nome de um personagem paquistanês. Atualmente, vive em Lahore, segunda cidade do Paquistão. Por opção, é bom que se diga. Decidiu retornar ao seu país natal depois de toda uma trajetória no Ocidente. Estudou em Londres e nos Estados Unidos; School of Economics e Princeton. Área de economia e finanças. Recém-formado, foi contratado pela Underwood Sansom & Company como consultor. Fazia avaliações financeiras em lugares tão distantes quanto New Jersey ou Valparaiso, e os clientes decidiam comprar, liquidar ou fatiar as empresas sob seu escrutínio. Meritocracia e criatividade a serviço da eficiência. Lema da companhia: concentre-se no fundamental. Focus on the fundamentals. Nas palavras de Changez: "Principio norteador da Underwood Sansom*, repisado conosco desde nosso primeiro dia de trabalho. Ele estabelecia uma atenção exclusiva aos detalhes financeiros, para revelar a verdadeira natureza dos fatores que determinam o valor de um bem". Assim, protegido por essa armadura, podia concentrar-se no trabalho.
O sonho de "fazer a América" para aquele imigrante jovem e talentoso parecia se realizar rapidamente. Até 11 de setembro de 2001 e seus efeitos. Assistiu à queda das torres gêmeas pela televisão, trabalhando em Manila, Filipinas. E, em suas palavras, "foi apanhado pelo simbolismo daquele ataque".
Na volta da viagem, no aeroporto em Nova York, já teve tratamento diferente dos seus companheiros de trabalho. A partir daí, sua percepção do mundo em que vivia ajudado pela "armadura fundamental" e pela negação da realidade começou a mostrar suas rachaduras. Os boatos de violência crescente – taxistas paquistaneses espancados, homens muçulmanos desaparecendo nas ruas, não puderam mais ser ignorados. O espaço urbano cobriu-se de bandeiras, patriotismo exacerbado e, principalmente, a desconfiança com o outro: qualquer estrangeiro de pele diferente podia ser o inimigo.
Parecia que o país, aterrorizado pela violência, passasse a "vestir roupas antigas, de outra época", onde qualquer preço seria válido em troca de segurança, certeza moral e garantias de um comando que os guiaria "de volta aos bons tempos". Daí uma sucessão de imagens de exaltação, uniformes, generais e salas de guerra a demonstrar até onde pode chegar um apelo à nostalgia.
No reconhecimento dessa situação e, com o agravamento da conjuntura no Paquistão – o risco deste ser invadido pela Índia, os conflitos religiosos e políticos aumentam. A nação fica simultaneamente ameaçada em suas fronteiras e à beira de uma guerra civil. Changez decide retornar à terra natal. Estar próximo da família que sofria cotidianamente os efeitos de uma política globalizada. Tiroteios, helicópteros no ar, blecautes e escassez de água e luz eram constantes. Curiosamente, roubos e assaltos não eram preocupação, apesar dos 8 milhões de habitantes e das precárias condições de vida. A mudança não foi fácil. Toda escolha tem suas perdas. Foi crucial saber que o foco exclusivo no fundamental incluía ignorar as pessoas. Até mesmo para recusar o apelo ao fundamentalismo religioso que tentou recrutá-lo no retorno a seu país.
A narrativa que fizemos até agora faz parte do livro O Fundamentalista Relutante (Alfaguara, 2007), do escritor paquitanês Mohsin Hamid. Qualquer semelhança com a realidade global ou nacional não é coincidência. Os psicanalistas reconheceram há tempos que não podem ficar psicologizando as obras de arte. Em outras palavras, as narrativas de ficção também nos ensinam, ou mesmo reiteram coisas que são importantes para nossa humanidade.
Uma delas: preconceito e segregação estão arraigados em nossa subjetividade. É a parte angustiante de nosso "patrimônio cultural", esses lugares de nossa intimidade que ainda não alcançamos fazer uma elaboração. Bastam um acontecimento e o discurso adequado para que demandas e atitudes que pareciam superadas retornem, aumentando o risco de intolerância. A psicanálise é uma prática que vai na contramão, no avesso de qualquer verdade única e fundamental, seja ela científica, religiosa ou política.
Isso nos responsabiliza a buscar elaborar a perda de ideais por soluções mágicas e abrir mão do "foco no fundamentalismo". A realidade é muito mais complexa, e saber que esses acontecimentos se organizam discursivamente nos ajuda a afirmar que, enquanto houver um desejo, o futuro não está decidido de uma vez por todas.
*Underwood é o nome do personagem principal da série House of Cards, da Netflix.
O seminário
Jornadas Clínicas da APPOA e Instituto APPOA – Psicanálise ao Avesso
Sábado e domingo, dias 10 e 11 de novembro, no Teatro Unisinos, em Porto Alegre. Com as presenças de Ana Costa, Christian Dunker, Doris Rinaldi, Elaine Foguel, Gerson Pinho, Liz Nunes Ramos, Marta Pedó, Otávio A. Winck Nunes, Robson de Freitas Pereira e Sidnei Goldberg. Informações sobre programação e inscrições em appoa.com.br.