Os passos lentos e vacilantes não combinam com a voz potente com que Rita Martini recorda da juventude na Caxias do Sul ainda distante de se tornar um polo industrial habitado por meio milhão de pessoas. Enquanto atravessa a rua que separa sua casa do capitel dedicado a Nossa Senhora de Salette, construído em 1944 numa área que hoje delimita a zona urbana do município, a aposentada de 85 anos conta que a pequena capela costumava ser o centro de uma comunidade que se reconhecia pela devoção à padroeira dos agricultores, cujas representações, com as mãos cobrindo o rosto ou os braços cruzados, reprovam os pecadores.
– O capitel era nosso ponto de encontro, para rezar ou fazer festa.
Na verdade, as duas coisas eram como se fossem uma só, porque a religião era muito presente na nossa vida. As moças de hoje são diferentes, muito cedo já saem para estudar fora – diz Rita.
Dezenas de capitéis como o de Nossa Senhora de Salette se espalham pelas paisagens rurais na região de colonização italiana da serra gaúcha. Tradição iniciada pelos primeiros imigrantes que vieram do norte da Itália, na segunda metade do século 19, são pequenos oratórios normalmente erguidos à beira de estradas vicinais, construídos em madeira, pedra ou tijolo e com portas de vidro. Dentro, repousam quadros ou estátuas de santos, às vezes ladeadas por arranjos de flores e castiçais. Eram construídos para pedir ou agradecer por uma graça alcançada, incluindo proteção contra doenças e chuva para ajudar na agricultura. Também era comum pedir proteção das nuvens de gafanhotos, que devastavam plantações, ou para que os filhos escapassem da convocação para a II Guerra Mundial.
– Era uma tradição, especialmente na região do Vêneto, colocar imagens de santos nas esquinas. O que ocorreu por aqui foi uma adaptação dessa prática. Ao mesmo tempo em que as primeiras vilas de imigrantes se organizavam para construir igrejas e capelas, os capitéis sempre estiveram muito associados às histórias das famílias. O que chama a atenção, inclusive de italianos que vêm visitar a Serra, é a preservação. Também havia capitéis na região de Erechim no oeste de Santa Catarina, mas pouca coisa resistiu ao tempo. Uma explicação para isso é o fato de termos aqui comunidades que pouco se confrontaram com outras culturas. Muitas famílias ainda habitam as terras herdadas dos antepassados – aponta a historiadora Terciane Luchese, pesquisadora da imigração italiana no Brasil e professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
A origem do capitel de Salette está no pagamento de uma graça não alcançada pelos agricultores Theotisto e Avelina Piccoli. O casal pedia uma gestação saudável para um filho que estava por vir, mas Avelina perdeu o bebê em um acidente de charrete. Apesar do acidente, a capela acabou sendo construída para reunir os moradores.
– O terreno já estava cedido, os vizinhos já tinham reunido o dinheiro, o padre já tinha prometido a benção. Assim resolveram que não tinha razão para não fazer o capitel – lembra Sueli Piccoli, 74, nora do casal e uma das familiares responsáveis pela conservação do capitel.
Em uma esquina da localidade de Monte Bérico, no limite entre Caxias do Sul e Farroupilha, reside um capitel em homenagem a Santa Bárbara, protetora contra intempéries. Foi erguido no final dos anos 1950, para evitar que o mau tempo prejudicasse as parreiras e os milharais dos produtores das redondezas. Maria Bragagnolo, 86 anos, recorda a origem da capelinha esforçando-se para lembrar a idade de um dos seus filhos, cujo batizado marcou a inauguração.
– Era um ano em que dava muita chuva de pedra, por isso todo mundo estava preocupado. Aí um vizinho comprou a imagem da santinha e pediu ao meu marido para fazer o capitel no nosso terreno. Lembro que a inauguração foi no dia do batizado do meu filho, 60 anos atrás – relata a mulher.
Em localidades nas quais não havia uma igreja por perto, era no entorno dos oratórios que se realizavam as celebrações religiosas, razão pela qual alguns continham uma caixa dentro da qual se depositava o dinheiro para pagar a missa. Em Monte Bérico, celebra-se Santa Bárbara a cada chegada de dezembro, com a imagem levada em procissão até uma igreja próxima para a benção do padre.
A mesma tradição vinha sendo mantida pela congregação que vive próxima ao capitel de Salette, sempre em setembro. Neste ano, porém, a missão foi abortada pelo risco cada vez maior oferecido pelos carros que trafegam em alta velocidade pela rodovia.
– A procissão que encerrava a novena sempre foi um evento que juntava todo mundo do bairro. Era muito bonito, porque ocorria no início da primavera, com o caminho bem florido. Mas ficou tão perigoso que tivemos de chamar o padre para dar a benção aqui mesmo – lamenta Rita Martini.
O caso do capitel de Salette ilustra um anacronismo que é ao mesmo tempo material e simbólico. São pequenos monumentos que sobrevivem ao tempo e à urbanização, porém, com significado bem mais marcante pelo viés identitário do que pelo religioso. Conforme o asfalto e o progresso modificaram as paisagens e os hábitos, as pequenas capelas que passam quase despercebidas conforme a velocidade com que se trafega são um traço que distingue e identifica o lugar, tão próprio da região quanto o cheiro de uva na época da vindima ou o estereótipo do colono, de chapéu de palha e garrafão de vinho à mão. Quando não são mantidos pelos descendentes daqueles que os idealizaram, o são por grupos de moradores que zelam por eles como um patrimônio comunitário.
Na região de Caxias conhecida como Terceira Légua, distante cerca de 15 quilômetros do centro da cidade, um capitel ornado com uma imagem do Cristo crucificado divide a atenção de quem chega à localidade com a mensagem de boas-vindas gravada em uma placa de madeira. Um dos responsáveis pela limpeza é o aposentado Vivaldino Zucco, 68 anos, que a cada 15 dias atravessa a rua da sua casa com a enxada nos ombros para capinar o mato que cresce no canteiro que circunda o capitel. Afetuoso, também costuma deixar algumas ameixas da sua horta como presente para os visitantes, em sua maioria ciclistas que pedalam pela charmosa Estrada do Imigrante e param para tirar fotos.
Católico fervoroso, Zucco atribui à fé a sua saúde e a disposição de um guri:
– Sem fé, a gente não é nada. Mas quando a gente reza, Deus olha pela gente e nos protege. Eu não tomo remédio, não sofro de doença nenhuma. Dizem que Deus é o primeiro médico.
A capital dos capitéis
O armazém de Estela Provensi é uma típica bodega de interior, frequentada pelos colonos locais. Quem senta à única mesa em frente ao estabelecimento pode contemplar a igreja do lugarejo popularmente chamado de Vinte e Oito, no interior de Pinto Bandeira. Distrito de Bento Gonçalves até 2013, quando empossou seu primeiro prefeito, Pinto Bandeira tem pouco mais de 3 mil habitantes, mas é o maior produtor de pêssegos de mesa do Estado e um dos principais produtores de espumantes do Brasil – mérito reconhecido com selo de indicação de procedência e que em breve deve obter uma denominação de origem.
A região tem o trabalho, a família e a fé como valores primordiais. Foi em Pinto Bandeira que o jornalista e escritor bento-gonçalvense Fabiano Mazzotti encontrou o maior número de capitéis em uma pesquisa iniciada em 2015, que resultará num livro a ser lançado no mês que vem. A obra conta a história de mais de cem capitéis da antiga Colônia Dona Isabel, área que compreende os municípios de Bento Gonçalves, Pinto Bandeira, Monte Belo do Sul e Santa Tereza. Um dos 46 capitéis catalogados por Mazzotti em Pinto Bandeira pertence à família de Estela Provensi e está localizado ao lado da igreja, em diagonal ao armazém. Foi feito pelo pai da comerciante, em 1952. Trata-se de uma homenagem a São Vítor, protetor dos epiléticos, como promessa pela saúde um filho nascido com a doença.
– Meu irmão Carlos tinha quatro anos quando começou a apresentar sinais de epilepsia, então meu pai decidiu construir o capitel, independentemente se o filho se curasse ou não. Lembro que, na época, não existia uma imagem de São Vítor para comprar, ele precisou encomendar de fora – lembra Estela, cujo irmão doente viveu até os 29 anos.
Aos 74 anos, Estela diz ter dúvidas se os dois filhos, um homem de 48 anos que mora em Porto Alegre e uma mulher de 40 que vive com ela, terão o mesmo zelo pelo capitel. Avalia que, na sua juventude, a religião era mais presente no cotidiano das famílias.
– Não é só os meus filhos, a cabeça de todo mundo mudou. Antigamente a família era muito unida, porque não tinha opção... Se a mãe ia na missa ou se o marido ia jogar futebol, todo mundo ia junto. Depois da chegada do carro é que mudou tudo. Vai cada um para um lado fazer o que tiver vontade. Meus filhos têm outra cabeça, não são muito de viver o passado. Mas acho que isso é coisa que a gente começa a se interessar depois de uma certa idade – divaga.
Para chegar até as personagens que resgatam a memória dos capitéis mais antigos e emblemáticos, Mazzotti conta com um aliado igualmente antigo: um Fusca vermelho, clássico modelo 1.300. Avalia que é uma forma de quebrar o gelo e demonstrar aos moradores dos rincões mais escondidos que não é um “aproveitador” vindo da cidade, muito menos um assaltante.
– Já viu ladrão chegar de Fusca? – brinca.
Autor de livros que transitam entre o ensaio fotográfico e a memória, Mazzotti desenvolveu a pesquisa sobre os capitéis a partir de um trabalho anterior, no qual fotografou e escreveu sobre todas as igrejas e capelas de Bento Gonçalves. Nas peregrinações pela chamada Região da Uva e do Vinho, percebeu que os capitéis despontavam como um elemento cultural importante, de perpetuação da identidade. A pesquisa ganhou fôlego ao descobrir um trabalho acadêmico publicado por cinco alunas de pós-graduação da extinta Faculdade Musical Palestrina, de Porto Alegre.
No estudo “Os Capitéis: Expressão Visual de Devoção Popular do Imigrante Italiano”, de 1981, as cinco mulheres entrevistaram personagens que o jornalista não encontraria vivos durante sua busca. Carmelina Ferrari, Leonides Ferrari, Loiva Carraro, Nelcy Ballista e Sueli Ferrari serão coautoras do livro de Mazzotti.
– Capelas e igrejas existem em qualquer lugar, mas capitéis são algo que tu não vais encontrar no interior de Pelotas ou em Minas Gerais. Pode haver um ou outro, e só. Contudo, percebi que as pessoas que vivenciaram os capitéis de forma enérgica não transmitiram esse fervor para as gerações mais novas, e que por isso era importante fazer esse trabalho de resgate. Acredito que o progresso não pode se dar pisando em cima do que existe, mas sim respeitando aquilo que nos configura e identifica como integrantes de uma comunidade – defende o jornalista.
Entre os mais diversos capitéis que encontrou ao longo de 10 mil quilômetros de estrada percorridos, um dos que mais intrigaram Mazzotti fica no cemitério da comunidade Nossa Senhora da Misericórdia, em Linha Jansen, interior de Pinto Bandeira. Dividindo espaço com algumas sepulturas, o oratório traz uma imagem da Nossa Senhora do Bom Parto, protetora das gestantes.
Ao redor do seu ventre, estão amarradas diversas fitas coloridas, resquícios de simpatias feitas por mulheres que pediam por uma gravidez saudável. A versão mais conhecida dessa superstição é a de que as grávidas amarravam uma fita ao redor da santa, faziam uma oração pela gravidez e depois prendiam a fita ao redor da própria barriga. Após o parto, voltavam ao capitel para devolver a fita à santa.
– Os moradores não sabem ao certo a origem, nem a motivação que levou à construção desse capitel. Mas é uma demonstração de como era a vida numa época em que os recursos eram escassos e se dependia muito da fé para alcançar um objetivo. De certa forma, eles também representam a coragem dos imigrantes para viver neste lugar – define Mazzotti.
Vandalismo na cidade
Os dois capitéis mais representativos da história da imigração italiana em Caxias do Sul já foram alvo de vandalismo ou roubo das imagens sacras. Em 2001, no bairro de Galópolis, uma estátua de São Roque importada da Itália no início do século 20 pelo imigrante Hercules Galló, empresário, político e figura célebre da cidade, foi retirada da capelinha que a abrigava e estraçalhada no asfalto durante a madrugada, para revolta dos moradores. Símbolo da comunidade, o capitel teria sido construído após o filho de Hércules, Renato Galló, ser atingido por um tiro durante a I Guerra Mundial, segundo consta, tendo a vida salva por uma medalhinha de São Roque que carregava no peito e que desviou o projétil.
Um destino trágico também se anunciava para o capitel mais antigo a resistir em Caxias, construído em 1881 pelo também imigrante Giovanni Micheli e adornado com imagens vindas da região italiana de Tirol, de onde Micheli emigrara. Após ser arrombado três vezes em 2014, o único capitel tombado pelo patrimônio histórico e cultural do município de Caxias do Sul teve erguida em seu entorno uma estrutura com grades e arames farpados, para dificultar as investidas dos ladrões e dos usuários de drogas que ocupavam o entorno.
Homenagem a Nossa Senhora do Rosário de Pompeia, não se sabe ao certo a graça que o imigrante teria pedido e que o motivou a fazer o capitel, ao qual deu o nome de uma de suas filhas, Mariana. O capitel de Mariana é o único na área central de Caxias, próximo ao Estádio Centenário. A responsável pela sua manutenção é uma moradora cuja infância foi marcada por acompanhar a mãe nos dias de rezar o terço junto ao símbolo. Edit Corso, 74, também encabeçou a campanha pela revitalização da construção religiosa, cuja entrega ocorreu em 2015. É a aposentada que organiza os encontros de oração no capitel, realizados mensalmente e que atraem dezenas de fiéis que têm no símbolo uma ligação mais do que religiosa.
– Memória é tudo. Não existiríamos sem as gerações que viveram antes de nós, por isso é nosso dever preservar o que elas deixaram.
O abandono do capitel nos incomodava, porque ele é parte da vida de quem mora nessa região desde criança, quando vínhamos com nossas mães para rezar – comenta Edit.
A revitalização foi custeada pela empresa que adquiriu o terreno, e que nos próximos anos irá se instalar no local. Contudo, uma área de cem metros quadrados será preservada para o capitel, conforme exigência deixada em testamento pela antiga proprietária, que já não tinha parentesco com a família original.
É um exemplo de como o passado pode sobreviver em meio aos avanços do presente, no caso, mantendo viva uma tradição formadora do patrimônio imaterial dos imigrantes que vieram à Serra.