Benjamin tem seis anos, mas já acumula experiência em participar das tarefas domésticas. Começou quando ainda usava fraldas, guardando os brinquedos depois de usar. Passou a ajudar a mãe a estender a roupa, a carregar uma das sacolas no retorno do supermercado, a limpar suas migalhas de bolacha com um pequeno aspirador portátil.
Seu último desafio está sendo arrumar a cama aos finais de semana. O lençol ainda não fica muito bem estendido e o cobertor pode até ser colocado torto, mas ele não perde o incentivo dos pais, os professores Viviane Pereira Moreira, 43 anos, e João Comba, 52 anos.
— Acho que quanto antes começar, mais natural fica para a criança entender que ela tem que fazer a parte dela – ressalta Viviane.
É que o envolvimento dos filhos vai além do auxílio para vencer a faxina e a organização da casa: é importante na formação deles. O que é aprendido na infância e alimentado durante o crescimento se incorpora ao modo de ser na vida adulta — neste caso, inclui o desenvolvimento de qualidades como a autonomia.
— Se a criança tem tudo muito de mão beijada, quando tiver que enfrentar dificuldade, frustração, vai se atrapalhar – garante José Paulo Ferreira, pediatra e membro do departamento de Desenvolvimento e Comportamento da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul.
O especialista também cita outras vantagens de envolver os pequenos na tarefa doméstica, como ensinar a importância de poupar água e luz e de separar o lixo corretamente, para colaborar com o ambiente. Ele acrescenta outro exemplo:
— Uma criança que aprende a lavar louça, secar e guardar no armário está aprendendo organização, uma sequência de trabalho que tem de ter início, meio e fim.
Lucia Hugo Uczak, professora do curso de Pedagogia da Universidade Feevale, acrescenta a importância desse hábito para o sentimento de pertencimento a um grupo familiar – a criança vai desenvolvendo a percepção de vínculo, de fazer parte.
Se a criança tem tudo muito de mão beijada, quando tiver que enfrentar dificuldade, frustração, vai se atrapalhar.
JOÃO PAULO FERREIRA
Pediatra
Inicialmente, isso ocorre mais pela imitação: ela vê os pais ou irmãos mais velhos desempenhando alguma tarefa e tenta fazer igual. O exemplo dos adultos é fundamental.
— Nas idades iniciais da infância, o aprendizado é muito mais pelo exemplo do que pela palavra. Se o adulto diz “larga o prato na pia”, mas não sai da mesa para largar o seu prato na pia, a mensagem aprendida será de ficar na mesa esperando e não levar o prato — explica.
E se a lição for muito bem aplicada, é capaz até de os papéis se inverterem entre pais e filhos. Há alguns dias, o pequeno Benjamin cobrou quando o pai saiu da mesa e, por descuido, não levou a louça à pia. Reproduziu o comentário feito algumas vezes pela mãe quando o distraído era ele:
— Papai, tu esqueceu alguma coisa aqui...
Perguntas e respostas
A partir de quando a criança pode se envolver?
A partir dos dois ou três anos já é possível ter tarefas, como, por exemplo, guardar os próprios brinquedos.
— É uma coisa muito simples, que, mesmo em período muito precoce, a criança pode fazer. E ela aprende pela prática, fazendo todos os dias — relata Lucia Hugo Uczak, professora do curso de Pedagogia da Feevale.
A especialista ressalta que, quando essa organização é aprendida desde a infância, com diferentes tarefas e evoluções durante seu crescimento, colabora na formação de um adulto responsável, comprometido, autônomo, com senso de compartilhamento.
Como deve ser a participação de meninos e meninas?
O ideal é que não se separe o que é tarefa de menino ou de menina e que filhos de ambos os sexos sejam envolvidos nas atividades igualmente. Mas cabe observar que, se os pais fazem a separação do que é tarefa para homem e do que é para a mulher, a criança tende a aprender da mesma forma.
Lucia chama atenção para os termos utilizados: se o pai diz que está “ajudando” a mãe a lavar a louça, dá a entender que é uma tarefa da mulher.
— Agora, se um dia a mãe lava, no outro, o pai, e, assim, vai revezando, mostra que a tarefa é compartilhada, que é de ambos.
Então, o empenho do pai também é importante?
Com certeza, porque essa concepção de distribuição de atividades por gênero começa na família. Especialmente para os meninos, o exemplo do pai é muito importante. Se ele nunca vir o pai fazendo alguma coisa, não vai entender que ele também deva fazer, destaca Lucia.
E se eu tenho empregada em casa?
Se a empregada doméstica fizer todas as tarefas sozinha, e a criança não ficar responsável nem mesmo por arrumar sua própria bagunça, essas lições podem não ser aprendidas em casa. Por isso, é interessante que seu filho tenha as suas atribuições desde sempre, independentemente de quem esteja ajudando a executá-las, diz Lucia.
O pediatra José Paulo Ferreira exemplifica com uma situação da sua família, que conta com o auxílio de uma funcionária durante a semana:
— A empregada não precisa entrar em casa e encontrar uma selva. Eu digo:“Gurias, deem um jeito no quarto de vocês”.Além disso, no final de semana, uma arruma a mesa, outra vai na padaria comprar alguma coisa... Tem empregada, mas também tem responsabilidade.
E se for mais fácil fazer por conta em vez de exigir do filho?
Provavelmente é mais fácil, mas a criança não ganharia autonomia alguma. É essencial estar presente quando os filhos começam a desempenhar alguma tarefa e, como eles tendem a levar muito mais tempo do que você, será necessário paciência. Da mesma forma que os pais têm de ser pacientes quando a criança começa a comer sozinha, por exemplo – no início, mais espalha a comida do que ingere. Lucia destaca que é importante que o trabalho da criança seja valorizado, que ela seja elogiada, mesmo que não atenda exatamente aos padrões de exigência dos pais.
Quais são os limites da atividade doméstica para crianças?
Tem que estar de acordo com a condição física e a capacidade da criança. Não dá para pedir para um menino de três anos lavar a louça, exemplifica Lucia. Ela também entende que os estudos são prioritários na vida de uma criança:
— Não se pode exagerar na rotina de tarefas, mas elas precisam estar presentes para o desenvolvimento infantil. Não se esqueça que, no começo, um adulto tem de estar presente: a criança só deve passar a realizar tarefas sem supervisão gradativamente.
Como fazer as crianças terem vontade de participar?
Se os pais conseguirem promover o envolvimento dos filhos nas atividades domésticas de forma lúdica, com aspecto de brincadeira, esse processo se torna muito interessante, segundo a professora.
Para não dar ares de fardo, são válidos desafios como:“Vamos ver quem consegue organizar os brinquedos na caixa?!”;“Vamos tentar deixar esse quarto organizado de maneira diferente?!”; “Quem consegue recolher mais rápido todo o material que ficou na sala?!”.
Lucia complementa que o ideal para a formação da criança é o envolvimento dela nas atividades que a família realiza. Se costumam preparar refeições em casa, por exemplo, é uma excelente oportunidade para incluí-las como ajudantes.
— Qual criança não ficaria orgulhosa de saber que ela lavou as verduras e preparou a salada que estão comendo? E se ela receber um elogio pelo trabalho? O que significa para sua autoestima? — comenta.
E se os filhos se recusam a realizar as tarefas?
Uma dica de Ferreira é criar uma tabela com as atribuições de cada membro da família, para cada dia da semana. Se as crianças não fizerem sua parte, os pais podem criar mecanismos para lembrá-la.
— Vai ter uma hora em que a criança vai querer alguma coisa, como pegar o celular ou ligar a TV. Os pais podem deixá-la fazer isso só depois de terminar a tarefa. Não é castigo, não é maldade: é combinação — esclarece o pediatra. — Ela tem o direito de não cumprir para testar se é regra mesmo, e tu vai dizer:“Filhotinho, o pai te ama de paixão, mas primeiro faz tua parte, para depois fazer a coisa boa”.
Que tal experimentar?
Reproduzimos a chamada Tabela Montessori (que mostra atividades domésticas que as crianças já podem executar em cada faixa etária), com adaptações da professora Lucia Hugo Uczak. A especialista ressalta que a relação de tarefas por idade é um tema difícil de definir o que é certo ou o que é inadequado, porque depende da visão de cada família, do que desejam para suas crianças e do que consideram um valor moral na sua formação. Portanto, trata-se de sugestões, sem rigor científico.
De dois a três anos:
- Guardar os brinquedos
- Colocar as roupas sujas no cesto
- Colocar lixo no lixo
- Dobrar panos
- Guardar seus calçados
De quatro a cinco anos:
- Arrumar a cama
- Ajudar a tirar pó (se não tiver alergia)
- Regar plantas
- Separar o lixo
- Organizar a mochila
De seis a oito anos:
- Tirar o lixo
- Varrer
- Por e tirar a mesa
- Preparar o próprio lanche
- Auxiliar no preparo de alimentos
- Auxiliar no cuidado de animais de estimação
- Guardar as compras nos armários
De nove a 11 anos:
- Fazer lista de supermercado
- Ajudar a cozinhar
- Trocar roupa de cama
- Limpar móveis
- Colocar roupa no varal
- Levar os cães para passear
- Lavar louças
De 12 a 14 anos:
- Fazer compras de pequenas quantidades
- Passar pano no chão
- Separar contas a pagar
- Preparar lanches para a família
- Limpar seu quarto