Uma semana fazia que Julia Souza Cruz estava emigrada e já era o suficiente para ter contatado militantes de esquerda, visitado a sede do Partido Comunista Português (PCP) e viajado do Porto ao município da Maia para acompanhar um comício eleitoral.
Ela foi embora de Porto Alegre no mês passado, com a mãe e o padrasto, que recebeu uma proposta de emprego em Portugal e fez como tantos brasileiros desiludidos e desesperançados: arrumou as malas e partiu. O padrasto (a quem ela chama de pai) já não botava fé no Brasil, já havia dito a Julia que os ideais dele haviam sido massacrados pelos políticos, enquanto a mãe estava assustada com a insegurança. Julia é que ficou receosa com a mudança, pensando em como dar continuidade a sua militância.
– Estou começando uma nova vida política, digamos assim. É um pouco complicado entender a conjuntura, me sinto um pouco perdida na questão dos aspectos políticos, que são completamente diferentes. Eu penso, putz!, o que esses caras têm para se preocupar? Eu, uma mulher, passeio aqui com a minha cadela à noite, posso ficar caminhando com ela até as 22h, sem a menor preocupação, com o meu celular na mão, mexendo nele.
No Brasil, não faltavam causas pelas quais brigar. Primeiro foi conhecendo o feminismo, contatando as vertentes de esquerda, simpatizando com elas, e hoje se define como seguidora do feminismo classista, "que é o feminismo marxista".
– A diferença da minha geração para a da minha mãe é gritante. Há certas coisas que eu consigo enxergar, imposições e machismo, que ela não. É preciso explicar bem mastigadinho. Uma vez eu queria viajar de ônibus sozinha, e ela me disse que não, que tinha medo. Contou que uma vez estava dormindo num ônibus e um homem tocou nos peitos dela. Ela não fez nada, se sentiu mal, culpada. Não estou questionando as atitudes dela, mas é a questão de como eu veria e de como ela viu. Eu veria que aquilo é uma agressão, que o defeito não está em mim.
Aos 17 anos, Julia acredita que não é uma exceção na militância e oferece como prova o grande movimento de ocupação das escolas estaduais em 2016, do qual ela foi pioneira na condição de aluna do Padre Réus. Julia estava lá desde o começo, primeiro num protesto de garotas contra abusos, depois em reuniões que juntavam só um punhado de pessoas debaixo de uma árvore, mais tarde nas noites passadas no colégio já sob ocupação e por fim numa mobilização que uniu dezenas de escolas da Capital e do Interior.
Com a internet, temos algo que nosso pais e avós nunca tiveram com a nossa idade, que é poder expor a nossa individualidade para amplas pessoas.
Julia Souza Cruz
– Próximo da ocupação, a gente fazia reuniões quase todos os dias. Dentro da ocupação, descobri outras pessoas, outros pensares, consegui me identificar, saber quais são realmente os meus ideais. A sensação de impotência é esmagadora para mim, por isso a importância de ter participado das ocupações foi primeiro enxergar em mim uma voz, segundo foi enxergar em todo mundo uma voz. O período das ocupações definiu a minha vida política. Realmente gosto de sentir que estou fazendo algo maior do que a minha vida. Por mais que eu esteja numa bolha social de pessoas engajadas, gosto de acreditar que o jovens estão mais politizados do que na geração anterior. E menos do que na geração seguinte.
Em 2016, Julia passou um período internada com depressão, síndrome de pânico, ansiedade. Acredita que não é um problema específico dela, que esses transtornos estão disseminados na sua geração, resultado de uma sensação de isolamento, de solidão, de supervalorização das aparências, de um imediatismo que não deixa tempo para cada um entender quais são suas emoções e o que quer de verdade. Será que a internet está inocente nisso?
– A internet é uma ferramenta fácil para a depressão, é fácil você se isolar e mandar mensagem para os amigos como se fosse uma pessoa feliz e despreocupada. E tem também a questão do imediatismo, que foi um dano que a internet nos trouxe.
Ao mesmo tempo, trouxe recursos, avanços, trocas de informações, pluralidade, possibilidades de expressão:
– Com a internet, temos algo que nosso pais e avós nunca tiveram com a nossa idade, que é poder expor a nossa individualidade para amplas pessoas. A gente mostra o que a gente pensa, o que a gente gosta, o que a gente escuta. Eu me defino como bissexual, por vezes pansexual, que não se importa muito com o gênero da pessoa, o bissexual você um pouco que se importa. E eu não me importo. Realmente acho que o gênero não é um fato que interfere. Sofri um pouco de preconceito do meu pai biológico, mas já esperava isso. Só que hoje há a liberdade. Não que seja comum, mas a gente consegue se enxergar, há a discussão de que isso existe, de que você não é anormal, não está doente. Isso faz muita coisa com teu subconsciente, são barreiras que você deixa de construir.
Raio X
Julia Souza Cruz, nascida em 10/3/2000
Uma prioridade: "A construção de uma nova realidade social justa e igualitária".
Um ideal: "Equidade".
Um herói: "Olga Benário".
Defina a educação que você recebeu: "Durante toda minha vida recebi uma educação pública e humanitária".
Que papel você espera ter na sociedade: "Espero ter um papel de reforma na nossa sociedade".
Qual a importância do trabalho: "É um meio de contribuição para a sociedade. E é uma instância importante da vida, que não deve se sobrepor às demais".
Um livro, um filme e uma referência musical: "O Martelo das Feiticeiras (Malleus Maleficarum), Rocky Horror Picture Show e Chico Buarque".
O fato histórico mais importante desde que você nasceu: "Golpe parlamentar da presidenta legitimamente eleita Dilma Rousseff".
Defina em uma palavra a sua geração: "Reconstrução".
Defina em uma palavra a geração dos seus pais: "Quebra".
Para onde caminha o Brasil: "O Brasil tem caminhado em direção a uma onda conservadora e de suspensão de direitos básicos. Espero em breve poder voltar a ver o avanço".
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